Durante a tarde de ontem o Ministério da Cultura chamou alguns jornalistas e a Senhora Ministra, acompanhada de juristas do Ministério, falou finalmente sobre o tema da Reforma do Direito de Autor.
Cabe tecer algumas considerações.
O lado positivo
Tais declarações são refrescantes, por duas razões. Por um lado, quebram finalmente o tabu que era este tema para o Governo.
Por outro lado, porque é uma posição politicamente séria. O que à partida seria uma adjectivação estranha de utilizar e desnecessária - tal deveria ser um pressuposto e não algo que devesse ser destacado - não fosse o contexto de reacções [nota: esta era uma ligação para um texto que foi removido pela Comissão, o original pode ainda ser consultado aqui] que temos tido das instituições europeias, tanto vindas Bruxelas quanto das suas representações, quando confrontadas com as críticas que a D3 e muitas outras apontam à directiva. Uma coisa são discordâncias políticas quanto a opções legislativas, outra coisa é estar apenas a brincar aos sound bites e jogadas de relações públicas que mantêm o tema numa superficialidade infantilizada e desdenham importantes movimentações democráticas de cidadãos que se preocupam com o tema. Numa altura absolutamente crucial para a Europa, com as eleições de Maio a serem as mais importantes das últimas décadas para o futuro do projecto europeu, as instituições europeias bem que necessitam de fazer alguma auto-reflexão sobre a forma como interagem com os cidadãos e quais as consequências dessas opções.
Mas voltando então ao debate das discordâncias políticas, que aguardávamos há mais de dois anos...
Antes de mais, é de lamentar que os cidadãos portugueses apenas possam conhecer a posição do Governo através do relato indirecto dos jornalistas, que publicam versões necessariamente resumidas de tudo quanto a Ministra terá dito. Até ao momento apenas saíram notícias no Observador e no Diário de Notícias, nas quais nos baseamos.
A primeira constatação óbvia é que nenhuma das nossas perguntas foi respondida.
No entanto, ao admitir que "não é um regime perfeito", o Governo português admite pelo menos indirectamente a validade das críticas que são feitas.
Mais especificamente em relação à utilização de filtros prévios, o Governo português fez - segundo o Observador - a constatação do óbvio, no mesmo sentido que a D3 tem também vindo a afirmar: "Os polémicos filtros automáticos aplicados de forma prévia ao upload de conteúdos não vão ser exigidos expressamente na nova lei, mas o Ministério assume que a única forma de a cumprir é as plataformas terem-nos".
Ou seja, as últimas versões desta directiva tentaram de facto fugir à polémica e a toda a contestação dos cidadãos, evitando referências expressas ao modo como deveria ser implementada a filtragem de conteúdos na Internet, mas mantiveram obrigações para as plataformas que apenas são passíveis de ser cumpridas com recurso a filtros. Um face-lift legislativo.
Em relação às excepções para startups e PMEs, estas de pouco ou nada lhes valem. Não é à toa que o jornal Político coloca as PMEs entre os grandes perdedores desta reforma (ao mesmo tempo que coloca a Google - também - do lado dos vencedores). E não é difícil perceber porquê. Ninguém vai investir numa startup que, fora já todas as dificuldades inerentes à entrada neste mercado hiper competitivo e hiper concentrado, tem apenas 3 anos para passar a estar sujeita às mesmas obrigações que a Google, ou seja a implementar um filtro semelhante aquele que custou à Google... 100 milhões de dólares. Estas excepções para PMEs condenam-nas a continuarem pequenas e irrelevantes para sempre, ou falirem caso cresçam.
Esta medida vai garantir que as grandes plataformas sobrevivem e que serão elas a controlar tudo aquilo que pode ser publicado na Internet.
Mas são escolhas políticas...
Responsabilidade das plataformas - não é "Ciência de Foguetões".
Mas aquele que é o grande equívoco da argumentação do governo é cair na esparrela da narrativa da indústria dos detentores de direitos, que equiparam plataformas como o Youtube a plataformas como o Spotify.
Esta questão é essencial, e apesar de demorar algumas linhas de texto a explicar, não é propriamente "ciência de foguetões", recorrendo à expressão inglesa, pelo que a tentaremos explicar de forma simples e resumida.
Existem dois tipos de responsabilidade, neste contexto: responsabilidade directa e responsabilidade indirecta. Um utilizador que publica uma música sobre a qual não tem direitos nem permissão, é sempre directamente responsável por esse acto. Já a responsabilidade indirecta, ou responsabilidade de intermediários, pode incidir sobre pessoas ou entidades que não têm responsabilidade directa no acto, mas que ainda assim podem reunir as condições para serem indirectamente responsabilizadas. O cerne da questão está precisamente em saber que condições são essas. Actualmente, nos termos da directiva do comércio eletrónico, as plataformas podem ser responsabilizadas quando forem alertadas para a presença de um conteúdo não autorizado e não o removam rapidamente. Apenas no caso de não cumprirem essa obrigação é que as plataformas são responsabilizadas, daí ser uma responsabilização indirecta.
Indepentemente da opinião de cada um sobre a questão, certo é que responsabilidade indirecta não pode ser... directa. Dizer que a plataforma em que um utilizador carrega um conteúdo não autorizado é tão responsável por esse acto como o utilizador que o praticou não é mais que uma ficção jurídica. A plataforma não escolheu publicar - e não publicou - aquele conteúdo, apesar de o ter alojado. É manifesto para qualquer pessoa de bom senso que uma responsabilização directa e automática da plataforma não é um regime equilibrado, e que levará à criação de apertados termos e condições para o utilizador final, que vão limitar aquilo que os cidadãos podem fazer numa plataforma.
Defender esta ficção é uma escolha política perfeitamente legítima. É perfeitamente legítimo alguém defender que a nossa sociedade não deve tolerar plataformas como o Youtube, que não realizam um controlo editorial prévio sobre tudo o que é lá publicado, e que se limitam a fornecer meios através dos quais qualquer pessoa pode publicar o seu conteúdo. Claro que é também uma escolha política que, em nosso entender, é profundamente errada e desprovida de sentido. Mas - repetimos - é uma posição política defensável.
Agora, não sendo essa a posição política que se defende, e caso se defenda a legitimidade da existência de plataformas como o Youtube, então será forçoso concluir que tais plataformas não podem ser, sem mais, directa e automaticamente responsabilizadas por qualquer conteúdo que qualquer pessoa lá possa publicar. Está portanto errada a Ministra da Cultura quando diz que plataformas como o Spotify e e plataformas como o Youtube são idênticas. Elas não podiam ser mais distintas.
Não, senhora Ministra, Youtube e Spotify não “fazem ambas o mesmo”. Um canal de televisão, uma estação de rádio, um jornal ou até um mero site como este exercem um controlo editorial sobre tudo o que lá é transmitido ou publicado. Não passa nada numa TV ou numa rádio que não seja aprovado pelos respectivos responsáveis. No Spotify não passa uma única música sem que antes o Spotify tenha reunido todas as autorizações e licenças necessárias juntos dos detentores de direitos. E no caso de algum conteúdo não autorizado ser transmitido, tais entidades são directamente responsáveis por esse acto.
E nenhuma dessas entidades permite que utilizadores lá publiquem conteúdos.
Pelo contrário, o Youtube é um intermediário, uma plataforma que permite que qualquer pessoa lá publique conteúdos. Uma plataforma que foi e é determinante para milhões de criadores - também eles são autores! Não é uma plataforma perfeita, e a Google, sua empresa-mãe, ainda menos. Mas este tipo de plataformas são essenciais à democracia e à participação dos cidadãos na sociedade digital.
Isto não significa que estas plataformas devam ter uma total isenção de responsabilidade - nunca foi esse o regime legal. Significa apenas que o regime de responsabilidade que devem assumir deve ser sempre de responsabilidade limitada, isto é, indirecta.
A ficção fantasiosa que a Senhora Ministra defende, de que as plataformas nas quais os cidadãos exercem a sua liberdade de expressão online devam ser automatica e directamente responsabilizadas por qualquer conteúdo que qualquer pessoa lá coloca, vai redundar em previsíveis e imperdoáveis restrições à liberdade de expressão dos cidadãos na Internet. As plataformas não assumirão riscos legais em que arriscam a sua responsabilização para defender a liberdade de expressão dos cidadãos. Passarão portanto a apagar por via das dúvidas, a censurar primeiro e perguntar depois. Serão sempre os cidadãos que em último caso irão arcar com as consequências e danos colateriais desta medida.
Vai redundar na submissão da liberdade de expressão a... filtros.
Vai redundar em censura.
É uma escolha política. Pode ser a sua escolha política. Mas, assim sendo, assuma-a directamente, sem falsas equiparações.
PS: Sobre o Artigo 11, continuamos sem saber porque é que uma medida que falhou em Espanha e Alemanha vai resultar na Europa, e recomendamos a todos os jornalistas a leitura deste artigo da International Federation of Journalists.