Em destaque:
- ISPs (fornecedores de acesso à internet) ignoraram recomendações da ANACOM, recusando, entre outras coisas, aumentar os volumes de dados móveis disponibilizados aos clientes.
- ANACOM demonstra falta de vontade ou de coragem para enfrentar o problema.
- ISPs protegidos de multas por violações de neutralidade da Internet por um Governo que, desde 2015, ainda não mudou a lei.
- Pouco mudou nas ofertas de zero-rating em Portugal, consideradas as piores da Europa.
- Dados de Internet móvel em Portugal: pagamos dos preços mais altos da Europa e temos dos volumes de dados mais baixos.
O que é a Neutralidade da Internet?
A neutralidade da Internet é um dos pilares do design técnico da Internet e umas das grandes razões para o seu sucesso. Enquanto princípio, garante que as comunicações que passam pela rede fluem livremente, sem interferência, restrição ou discriminação por parte das empresas de telecomunicações que controlam a infraestrutura que serve de base à Internet.
Tal como uma empresa de fornecimento de energia não pode discriminar ou interferir nas escolhas do consumidor - se este utiliza a electricidade para ligar o computador ou a torradeira, quão frequentemente o faz, ou que pessoa liga o equipamento - devendo apenas fornecer energia e cobrar o consumo, um fornecedor de serviço de acesso à Internet deve também limitar-se a fornecer o serviço de acesso, sem interferir nos serviços em concreto que o utilizador pretende utilizar através da Internet.
O princípio da neutralidade da Internet tem sido sido fundamental para a inovação, concorrência e a livre circulação de informação que caracterizam este século. Uma rede aberta e neutra, como a Internet, permite que todos nela possam entrar e participar, oferecer os seus serviços, aceder a informação, expressar-se, etc.
Em especial, as reduzidas barreiras à entrada possibilitaram um ambiente de elevadíssima concorrência, em que pequenas mas inovadoras empresas puderam competir directamente com grandes corporações, proporcionando-nos ao longo dos anos níveis de inovação, concorrência e livre circulação de informação como nunca tivéramos antes.
O caminho europeu até à Neutralidade da Internet
Em 2015, após uma longa batalha no Parlamento Europeu que envolveu larga mobilização dos cidadãos europeus e intensas campanhas por parte de activistas e associações de direitos digitais e do consumidor - e apesar de uma proposta original da Comissão que ia em sentido contrário e do forte lobbying das empresas de telecomunicações - foram aprovadas regras europeias de protecção da neutralidade da Internet.
Apesar destas regras serem genericamente consideradas bastante positivas e uma vitória para os cidadãos europeus, alguns aspectos ficaram menos claros. Nomeadamente, as práticas de zero-rating (ver abaixo) não foram explicitamente proibidas. Outros países fora da Europa tomaram medidas mais estritas. O zero-rating é proibido na Índia, e no Canadá o regulador proibiu ofertas de zero-rating com base na lei canadiana.
Zero-rating e ofertas similares
O que é Zero-Rating
Zero-rating é o nome dado a ofertas em que um ISP não cobra o tráfego utilizado por uma aplicação específica ou por um grupo específico de aplicações. Ofertas similares a zero-rating são ofertas em que o ISP oferece o tráfego utilizado por uma aplicação específica ou grupo específico de aplicações a um preço bastante inferior ao preço que cobra a normal utilização da Internet. Utilizaremos a expressão zero-rating de forma lata, incluindo ambas as situações.
Recentemente Portugal esteve na ribalta quanto a este assunto, tendo atraído críticas internacionais devido à gravidade das ofertas de zero-rating dos ISPs portugueses.
(1,2,3,4)
A situação do mercado português
O mercado português reúne vários condicionalismos que tornam as práticas de zero-rating especialmente lesivas para o consumidor português:
- Apenas três operadores detêm cerca de 98% do mercado de telecomunicações móvel (pg.9).
- Os volumes de dados móveis disponibilizados são em média bastantes diminutos.
- O preço dos dados móveis é dos mais caros da Europa.
Realidades contrastantes no consumo de dados móveis na Europa, com Portugal a destacar-se pela negativa.
Fonte: http://research.rewheel.fi/prices/country/
Evolução do preço dos dados móveis em Portugal é anedótica. Para uma análise mais detalhada, consultar a submissão que a D3 e a epicenter.works, em conjunto com outras 11 organizações de diversos países, apresentaram à ANACOM, no ano passado.
No que respeita à Internet fixa, Portugal sempre teve um histórico de liderança a nível europeu, com velocidades de Internet bem acima da média europeia. O que apenas acentua o contraste com a situação que se vive na Internet móvel, em que Portugal encontra-se bastante atrasado em relação à Europa.
Esta situação não é fortuita. Na verdade os ISPs portugueses mantém bastante baixos os limites de dados disponibilizados ao consumidor, de forma a lucrarem com a venda de pacotes de dados extra. Não têm qualquer incentivo em aumentar esses limites e fazê-los alinhar com a média europeia.
Neste contexto de escassez de dados móveis, as ofertas de zero-rating para grupos específicos de aplicações podem à primeira vista parecer especialmente atractivas: por um preço relativamente baixo, é dado ao consumidor um volume de dados várias vezes superior ao seu limite mensal, isto desde que ele apenas o use em grupos específicos de aplicações.
Para muitos consumidores, especialmente numa faixa etária mais jovem, estas ofertas podem até resultar num encargo mais baixo. Contudo tal apenas acontece porque os volumes de dados disponibilizados ao consumidor português são mantidos artificialmente baixos.
Enquanto na Europa os limites de dados móveis crescem a cada ano, com vários países em que é já habitual existir tráfego ilimitado, Portugal está na cauda da Europa.
Estas práticas são proibidas?
Como mencionado, a forma como as regras europeias de neutralidade da Internet foram escritas deixa espaço para interpretação. Por essa razão, o BEREC (sigla em inglês do Organismo de Reguladores Europeus das Comunicações Electrónicas) criou directrizes orientadoras para os reguladores nacionais sobre como implementar estas regras. Entre outras coisas, dizem que:
Há situações em que o zero-rating é claramente proibido: quando, após consumido o volume de dados, houver o bloqueio ou abrandamento de todas as aplicações com excepção das aplicações abrangidas por zero-rating. Esta restrição deveria, em princípio, proteger contra a prática de oferecer somente pequenos volumes de dados para uso geral, que no entanto continua a acontecer em Portugal.
Existem ainda situações em que uma oferta de zero-rating pode ser proibida, mas tal depende de uma análise casuística dos reguladores nacionais, que deve levar em linha de conta os seguintes factores:
- Se as práticas logram os objectivos gerais do Regulamento, de “garantir o tratamento equitativo e não discriminatório do tráfego” e de “garantir o funcionamento contínuo do ecossistema da Internet como motor de inovação”
- A posição de mercado do ISPs e dos fornecedores de serviços (aplicações) envolvidos;
- Os efeitos nos direitos do consumidores, por exemplo reduzir a gama de aplicações disponíveis, incentivar consumidores a utilizar certas aplicações, ou se existe uma redução significativa na escolha do consumidor;
- Os efeitos nos direitos dos provedores de serviços (aplicações), nomeadamente se existe um efeito na gama de aplicações que esses provedores podem fornecer, ou se eles são significativamente desencorajados de entrar no mercado;
- A escala da prática (por exemplo, o número de subscritores de uma oferta), e até que ponto os consumidores têm ofertas alternativas e outros ISPs.
Quando dizemos que Portugal tem as piores violações de neutralidade da Internet da Europa, é porque, seguindo os critérios acima, quase conseguimos fazer bingo em todas as “checkboxes”.
É precisamente em países em que as pessoas têm escassos volumes de dados que mais se sente o efeito destas ofertas. O zero-rating seria menos problemático se nos dessem limites de dados bem superiores.
É nestes mercados que o utilizador final mais fica condicionado na sua escolha, não tendo realmente uma escolha livre quando, entre duas aplicações concorrentes, a utilização de uma sai imensamente mais cara que a outra, por opção e por acção do seu operador. O leque de escolhas de aplicações para o mesmo efeito até pode ser bastante alargado, mas se a utilização das aplicações implica tráfego de dados, e se o tráfego de dados de cada aplicação para o utilizador final sai a um preço bastante diferente, a escolha do consumidor é condicionada e reduzida. O ISP cria um incentivo económico para que os seus clientes utilizem certas aplicações em vez de aplicações concorrentes. Esta discriminação de preço é o preciso contrário de “garantir o tratamento equitativo e não discriminatório do tráfego”, um dos objectivo do Regulamento.
Prejudica também o “funcionamento da Internet como motor de inovação” (outro objectivo do Regulamento) pois levanta barreiras artificiais à concorrência, protegendo empresas que já são populares e que já têm mercado e desencorajando novos participantes a entrar num mercado por não lhe ser dada a devida oportunidade para nele competir em iguais condições. Para mais, as aplicações favorecidas tendem ainda a ser aplicações de origem americana. Um estudo recente da epicenter.works chegou à conclusão que do top20 das aplicações mais frequentes neste tipo de ofertas, 15 eram dos EUA, e apenas 3 eram europeias.
O facto de Portugal ser um mercado em que apenas três operadores móveis têm 98% de quota de mercado é a cereja no topo do bolo.
Perante tudo isto, o que fez a ANACOM?
A actuação da ANACOM
Perante esta situação, a ANACOM, tardiamente, decidiu intervir. O que fez?
Essencialmente, a ANACOM, após um projecto de decisão, consulta pública e audição das partes, publicou a sua decisão em Julho de 2018. Nela,
- Ignorou os impactos da discriminação de preços no mercado e nos direitos dos consumidores.
- Focou-se antes num aspecto relativamente técnico, o de garantir que não existe tratamento diferenciado de tráfego quando o plafond mensal é esgotado e o utilizador fica impedido de utilizar a Internet mas consegue continuar a utilizar as aplicações de zero-rating, proibindo tal cenário.
- Recomendou aos ISPs que “procedessem a uma aproximação dos volumes de tráfego incluídos nos plafonds gerais de dados aos volumes de tráfego dos plafonds específicos”.
- Recomendou aos ISPs que publicassem os termos e condições aplicáveis a entidades interessadas em ter a sua aplicação incluída nas ofertas zero-rating.
A resposta dos ISPs:
Sabemos a resposta dos ISPs e as considerações do próprio regulador sobre as mesmas a partir do relatório relativo à neutralidade da rede, referente a 2018, publicado pela ANACOM, o qual citaremos de ora em diante.
Em primeiro lugar, os ISPs culparam imediatamente a ANACOM, junto dos seus clientes, pelas (escassas) mudanças que foram obrigados a implementar, passando o custo reputacional associado à mudança para o regulador, contando com o facto de o público estar insuficientemente informado para perceber a decisão.
Em relação à questão mais técnica do tratamento diferenciado após esgotar-se o plafond de dados gerais, a maioria dos operadores cumpriu a determinação da ANACOM activando automaticamente um plafond de dados extra, cobrado segundo um preço pré-definido, ou bloqueando o consumo de dados nos casos quando não exista saldo suficiente.
Já em relação à recomendação da ANACOM para aumento dos volumes de dados, aproximando os volumes de dados mensais aos volumes das ofertas de zero-rating, todos os operadores pura e simplesmente ignoraram o regulador. Nem um mudou as suas ofertas, inclusivamente um dos operadores considerou mesmo que “os atuais plafonds se encontram ajustados à procura”.
«Constata-se que nenhum PSAI efetuou alterações aos limites de tráfego destas ofertas, para reduzir o diferencial de volume de tráfego existente entre plafonds gerais e plafonds específicos nas ofertas zero-rating.»
[PSAI=ISP]
Em relação à publicação dos termos e condições para as empresas / aplicações que entram nesses planos de zero-rating, também todos os operadores ignoraram as recomendações do regulador.
«Nenhum prestador atendeu à recomendação da ANACOM respeitante à publicação das condições específicas impostas às entidades potencialmente interessadas para inclusão das respetivas aplicações e/ou conteúdos nas ofertas zero-rating e similares.»
A reacção do regulador perante as respostas.
«A matéria relativa às recomendações continuará a ser monitorizada pela ANACOM(…) em particular as práticas zero-rating e similares, revestem relevância suficiente para que se justifique continuar a analisá-las no contexto da neutralidade da rede (…)»
Perante tal prepotência dos ISPs, o nosso regulador decidiu portanto… continuar a analisar a situação.
«Além disso, para dar continuidade à análise das ofertas zero-rating e similares, a ANACOM propôs-se desenvolver, no período de 2019-2021, uma reflexão sobre este tipo de ofertas comerciais, que dê primazia a outros aspectos além das práticas de gestão de tráfego após o esgotamento dos plafonds gerais de dados, ainda que esta vertente continue a ser monitorizada (…).»
E propõe-se ainda a desenvolver reflexões... ao longo de vários anos.
Comentário
A D3 pode apenas lamentar a falta de vontade e/ou coragem da parte da ANACOM, que abdica das suas obrigações de defesa do consumidor português e compactua, por omissão, com práticas lesivas por parte dos ISPs.
As ofertas de zero-rating prejudicam o consumidor, prejudicam a livre concorrência ao desnivelarem o terreno em benefício de certas aplicações, e constituem uma ameaça a uma Internet livre e neutra.
São portanto uma infracção ao princípio da neutralidade da Internet.
Ao não actuar sobre as práticas de discriminação de preço entre aplicações, ao restringir a sua actuação a discriminações técnicas de tráfego, e ao limitar-se a emitir recomendações prontamente ignoradas, sem com isso tirar as devidas ilações, a ANACOM demonstra não ter qualquer intenção de agir sobre o problema base das ofertas zero-rating.
Em suma, temos em Portugal o seguinte cenário:
- Um regulador bastante relaxado e permissivo.
- Um governo que também não parece preocupado com o problema, já que desde 2015, ainda não se deu ao trabalho de mudar a lei por forma a introduzir as multas por infracções da neutralidade da Internet.
- Um mercado sobre-concentrado em que os ISPs, perante esta situação, sabem que podem dar-se ao luxo de ignorar recomendações públicas do regulador sem qualquer consequência prática, e continuar a proporcionar um péssimo serviço aos clientes.
Soluções?
Perante este lamentável cenário, danoso para os consumidores portugueses, que se vêem desprotegidos pelas instituições que deveriam cumprir esse papel, entendemos que deverá ser a Assembleia da República, i.e. os partidos nela representados, a tomar iniciativa a fim de corrigir esta situação.
Nesse sentido, apelamos a que os nossos representantes na Assembleia da República apresentem iniciativas legislativas a fim de:
- Implementar as alterações legislativas a que obriga o Regulamento (UE) 2015/2120 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, que estabelece medidas respeitantes ao acesso à Internet aberta, por forma a dar base legal ao regulador para multar infracções da neutralidade da Internet;
- Forçar os ISPs a aproximarem as suas ofertas de volumes de dados móveis à média europeia.
Isto sem prejuízo de eventuais medidas que visem pôr fim à sobre-concentração do mercado.
Por fim, apelamos ainda ao governo e aos partidos representados no Parlamento Europeu e respectivos deputados no sentido de pressionarem e lutarem por um esclarecimento das actuais regras europeias com vista à proibição explicita do zero-rating e ofertas similares.
Ligações e mais informação:
Two years of net neutrality in Europe – 31 NGOs urge to guarantee non-discriminatory treatment of communications - 30 de Abril de 2019
13 organizações de diversos países pedem à ANACOM que defenda a neutralidade da Internet - 23 de Abril de 2018