Pela defesa dos direitos digitais em Portugal




A EMEL decidiu recentemente bloquear o acesso de aplicações alternativas ao sistema de bicicletas partilhadas Gira, como a mGira ou a Gira+, desenvolvidas autonomamente por jovens programadores com o intuito de resolver os problemas assinalados pelos utilizadores (noutras palavras, melhorar o serviço). A partir de agora, quem quiser usar as bicicletas partilhadas será obrigado a usar a aplicação oficial. E não só, tendo adoptado o sistema de certificação "Play Integrity", a nova versão da aplicação também obriga os utilizadores a terem dispositivos Android certificados pela Google. Os sistemas operativos “alternativos”, muitas vezes desenvolvidos precisamente para reforçar a privacidade e tentar fugir à vigilância constante da multinacional americana (como é o caso do GrapheneOS e do e/OS), ficam assim excluídos.

A EMEL justifica a medida em nome da segurança e da protecção de dados dos utilizadores, mas este argumento, de resto comum no ambiente digital, merece um escrutínio aprofundado. Em primeiro lugar, nada garante que uma aplicação certificada pela Google seja mais segura do que, por exemplo, um acesso via Web. No fundo, se podemos gerir a nossa conta bancária através de um browser, porque não poderíamos também aceder ao sistema de bicicletas partilhadas da mesma forma? Por outro lado, poderia ter sido interessante, e mais vantajoso para os utilizadores da Gira, se a EMEL tivesse envolvido no processo de actualização os programadores que criaram as aplicações alternativas.

Mas há um outro aspecto que é importante frisar. Quando a Câmara de Lisboa - ou qualquer outra entidade pública - adopta tecnologias que exigem a utilização exclusiva de dispositivos controlados pela Google (Android) ou pela Apple (iOS), o que acontece é, de facto, um subsídio indirecto a estes gigantes tecnológicos. Optar por que o sistema Gira apenas seja acessível através de aplicações autorizadas pela Big Tech está longe de ser uma mera opção técnica, porque obriga os cidadãos que queiram usufruir de um serviço público a adoptarem dispositivos controlados pela Google e pela Apple. Longe de ser um mero reforço da segurança, a imposição unilateral do sistema de certificação "Play Integrity" por parte da Google é mais um episódio na longa história da enclosure digital: a progressiva apropriação dos espaços digitais por meia dúzia de poderosíssimas empresas privadas. Com a nova versão da aplicação Gira, que canaliza forçadamente os utilizadores para os ecossistemas fechados da Google e da Apple, uma empresa pública está em última análise a contribuir para a hegemonia dos dois gigantes tecnológicos e para a perpetuação do seu domínio.

Nos Estados Unidos e na União Europeia estão em curso processos legais contra o monopólio das grandes plataformas e estão a ser elaborados regulamentos mais rigorosos para limitar o seu poder, inclusive obrigando a abrir o mercado a app stores alternativas. Em Portugal, a EMEL escolhe, pelo contrário, reforçar ulteriormente o poder destas corporações. Em lugar de utilizar o dinheiro público para favorecer os interesses da Big Tech, o Estado Português - que hoje tanto zela pela soberania digital nacional - deveria garantir que os seus órgãos asseguram um acesso tanto quanto possível agnóstico em termos de plataforma, como web apps ou aplicações independentes das app stores oficiais, soluções abertas e “interoperáveis” que não obriguem os cidadãos a submeter-se a lógicas fechadas e intrinsecamente extractivas.

Com esta nova versão "blindada" da app da Gira, a EMEL restringe a liberdade de escolha dos utilizadores e compromete o princípio de que os serviços públicos devem ser independentes dos interesses privados, além de bloquear inovações que poderiam surgir da própria comunidade, perdendo assim uma oportunidade preciosa para melhorar o serviço de forma colaborativa. Ah, entretanto os programadores da mGira e da Gira+ lançaram novas versões que procuram contornar o bloqueio da EMEL. A luta continua.

Davide Scarso, Professor auxiliar na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova.