Pela defesa dos direitos digitais em Portugal




foto do momento de entrega da medalha

A D3 foi distinguida com a Medalha de Honra da Liga Portuguesa dos Direitos Humanos – Civitas, uma instituição centenária que tem como finalidade a defesa, aprofundamento e expansão dos Direitos Humanos.

A Medalha de Honra da Liga Portuguesa dos Direitos Humanos – Civitas tem como objetivo incentivar, reconhecer e valorizar o trabalho de activistas e instituições que contribuam de forma destacada pela promoção e avançar dos Direitos Humanos e pela salvaguarda da Dignidade Humana. A distinção é atribuída não mais que uma vez por ano, sendo o dia 10 de Dezembro de cada ano, aniversário da assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a data por excelência para a sua entrega.

A cerimónia teve lugar no passado dia 10 de Dezembro, na Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais.

A D3 agradece à Liga Portuguesa dos Direitos Humanos – Civitas tão honrosa distinção.

 medalha

(foto da cerimónia de entrega, © Liga Portuguesa dos Direitos Humanos – Civitas) 

Publicamos abaixo as notas do discurso de agradecimento.

Notas do discurso de agradecimento (adaptado)

Caríssima Liga Portuguesa dos Direitos Humanos - Civitas (LPDHC), sua Direcção e Presidente, caríssimos oradores, e todos os presentes.

É um prazer e uma honra estar aqui hoje em nome da D3, da sua Direcção, e em específico do seu Presidente, Ricardo Lafuente, que ainda ontem esteve neste mesmo local, vindo do Porto, a apresentar uma keynote no âmbito do Digital Rights Festival - evento aliás co-organizado pela LPDHC. Infelizmente, por afazeres familiares e profissionais, não lhe é possível estar também hoje aqui. O meu nome é Eduardo Santos, sou um dos fundadores da D3, e fui Presidente entre 2017 e 2023.

Agradeço à Liga Portuguesa Direitos Humanos - Civitas, na pessoa do seu Presidente, Dr. Paulo Sargento, tão honrosa distinção.

Os direitos digitais

Afinal, o que é isto dos “direitos digitais”? Celebramos hoje, nesta cerimónia, o Dia Internacional dos Direitos Humanos. Serão a mesma coisa? Algo parecido, algo distinto?

Na D3 definimos direitos digitais como direitos fundamentais em contexto tecnológico, em especial quando relacionados com a Internet. Categorizações e definições académicas são-nos menos interessantes, deixamos isso para os teóricos académicos. Para todos os efeitos, a autonomização dos direitos digitais, ou pelo menos dos grupos ou movimentos de direitos digitais, surge por razões históricas, de cariz prático, com os antecedentes mais relevantes desse movimento a remontarem aos anos 80/90, do século passado. Na Europa, é fundada em 2002 a EDRi - European Digital Rights, da qual a D3 é o único membro português.

Tornava-se por estas alturas claro, pelo menos para certos grupos mais intimamente ligados à tecnologia, que havia questões fundamentais por responder relacionadas com o impacto da tecnologia nas nossas vidas e nos nossos direitos. Era uma área relativamente nova, por norma não abrangida ou abordada pelas tradicionais organizações de direitos humanos, pelo que os grupos de direitos digitais desenvolvem-se então de forma autónoma. Na sua base estava a necessidade urgente de desenvolver pensamento crítico, capaz e informado, sobre tecnologia. Na sua génese, o movimento dos direitos digitais alia conhecimentos tecnológicos de hackers - no sentido original do termo - a uma defesa intransigente dos direitos humanos no mundo digital.

Hoje, a separação entre movimentos de direitos digitais e demais movimentos de direitos humanos é cada vez menor. Hoje, a importância da tecnologia nas nossas vidas tornou-se de tal forma evidente, que me escuso sequer a elaborar esse ponto. Penso, por isso, que o futuro será de convergência. Afinal, os direitos digitais são direitos humanos; os direitos humanos são também digitais.

Sobre a D3

A D3 começa algures em 2016, depois de um apelo público inicial para a sua criação e de alguma preparação online subsequente. Seguiu-se uma reunião constituinte no Porto, e a primeira assembleia-geral em Lisboa, já em 2017, onde 15 pessoas, a maioria das quais não se conhecia anteriormente, se tornam sócios-fundadores da associação. Actualmente, a D3 conta com cerca de 70 associados. O perfil mais predominante é técnico, fruto de uma forte ligação ao movimento do software livre.

Destacaria rapidamente três exemplos da nossa actividade.

Desde logo, a declaração da inconstitucionalidade da lei dos metadados, pelo Tribunal Constitucional, que acontece na sequência de uma queixa que apresentámos à Provedora de Justiça, em 2017 - uma das nossas primeiras iniciativas, que demorou vários anos a dar frutos.

Durante a pandemia desenvolvemos também bastante actividade relativamente às apps de rastreamento de contactos, um subproduto do solucionismo tecnológico reinante, que apresentava mais problemas que vantagens. Em especial a partir do momento em que o Governo anunciou que a sua utilização seria obrigatória para funcionários públicos e militares - medida de que rapidamente desistiu.

Mais recentemente, a Tarifa Social da Internet, que depressa percebemos ser problemática, tendo feito campanha e pressão para a sua melhoria, algo apenas parcialmente conseguido. O futuro veio a dar-nos razão: do grande objectivo de chegar a 800 mil famílias necessitadas, apenas 500 aderiram. Não 500 mil. 500. De tão fantástica que era.

A defesa dos direitos digitais

Meus caros, a defesa dos direitos humanos no digital não nos faz muitos amigos. É muitas vezes tida por inconveniente, controversa, e portanto mal recebida:

Seja quando tive de ouvir o Exmo. Sr. Director da Polícia Judiciária a dizer publicamente, num podcast do Jornal de Notícias, que esperava que eu nunca viesse a precisar da ajuda da PJ, enquanto vítima, devido à minha opinião sobre o tema dos metadados. Um tema complexo, mas em que a nossa opinião é a mesma do Tribunal Constitucional, do Tribunal de Justiça da UE, da Provedora de Justiça, e da Comissão Nacional de Protecção de Dados.

Seja quando abordamos o tema da encriptação das telecomunicações e temos de levar com aquele discurso populista-securitário, de que queremos é proteger criminosos.

Seja, de igual forma, quando criticamos a imparável expansão da videovigilância do espaço público, sem qualquer critério de proporcionalidade, num país que é dos mais seguros do mundo.

Seja quando criticamos a captura pelas grandes tecnológicas de toda a infraestrutura digital do Estado, e passamos por anti-inovação ou anti-mercado.

Seja quando criticamos temas como a Tarifa Social da Internet e nos assumem motivações político-partidárias, quando o falhanço da medida, por a todos os níveis ser péssima, era por demais evidente, previsível e expectável.

Seja quando criticamos os tarifários zero-rating e a inacção crónica da ANACOM e dos Governos, que permitiram que o nosso mercado de telecomunicações, um dos mais caros da Europa, fosse capturado por um oligopólio.

Seja quando criticamos as ideias de avançar com o voto electrónico, por demais inseguro e um sério perigo para a democracia, perante aqueles que apenas valorizam a mera conveniência.

Enfim.
Como vêem, defender os direitos digitais, como os direitos humanos, não é fácil, não ganha favores, nem é isento de controvérsia. Mas se fosse fácil, não estávamos cá nós. Fazemos essa luta, porque tem de ser feita.

Por isso, esta distinção, inesperada, muito nos honra.

Senhoras e senhores, como já foi aqui referido, o autoritarismo está à espreita, e pior, está na moda. Ainda que algum seja apenas performativo, temos também o verdadeiro, uma ameaça real à nossa democracia. Por isso, a defesa dos direitos humanos é hoje essencial, também ela tem de voltar a estar na moda.

Conclusão

Eu costumo dizer que as associações não existem. Não fazem nada. São uma mera ficção jurídica, um nome e um número inserido algures num registo público. Algumas terão porventura património, mais visível, como uma sede, nós nem isso. Os nossos cerca de 70 associados pagam uma quota ordinária de 32€ por ano, o que, feitas as contas, dá um orçamento de menos de 200€/mês para a actividade da associação. Quase nada. Já recebemos bolsas, sim, mas para desenvolver projectos específicos, não para o núcleo do nosso trabalho.

O que existe são as pessoas. Quem abdica do seu tempo pessoal, de horas que podia passar com família e amigos, para trabalhar em prol do bem comum. Quem tantas vezes consegue ainda encontrar forças, ao final da noite, depois de deitar os filhos, para ir escrever um texto, fazer manutenção de sistemas, ou ter uma reunião. Fazem-no, porque sabem que este esforço é capaz de gerar resultados bastante mais significativos quando realizado de forma conjunta e organizada do que quando realizado de forma isolada.

Por isso, esta distinção é, acima de tudo, uma distinção para aqueles que ao longo dos anos deram o seu tempo, dinheiro, paciência, esforço, dedicação, para que a luta pelos direitos digitais em Portugal, apesar de todas as limitações, deixasse de ser um deserto.

A todos um muito obrigado.