Pela defesa dos direitos digitais em Portugal




No seu livro “The Art of Asking” (que também deu origem a uma Ted Talk), Amanda Palmer descreve como conseguiu desenvolver a sua carreira artística, a partir de determinada altura, graças aos donativos regulares dos seus fãs. Essas contribuições passaram então a garantir-lhe a estabilidade financeira necessária a que pudesse prosseguir os seus projectos artísticos, que os fãs também queriam ver realizados.

Em tempos de pandemia do COVID-19, não estamos todos no mesmo barco. Autores e artistas fazem parte do grupo daqueles que estão numa posição extremamente vulnerável, principalmente aqueles que vivem essencialmente dos seus espectáculos ao vivo. A juntar a estes estão todos os profissionais que trabalham e prestam serviços em torno desta indústria. Todo o sector está paralisado.

 Esta situação vai muito provavelmente prolongar-se por um tempo considerável. Mesmo mantendo uma pespectiva optimista sobre o evoluir da situação de pandemia e das medidas de restrição impostas no país, há que ter em conta que os espectáculos artísticos, por um lado, não são considerados bem essenciais e, por outro lado, implicam ajuntamentos cuja dimensão pode ir até aos muitos milhares de pessoas, e por esse motivo deverão ser das últimas actividades a receberem autorização para retomar a normalidade.

Recentemente o Ministério da Cultura anunciou uma iniciativa no valor de 1 milhão de euros para levar espectáculos ao público, através de canais digitais e tv por cabo. Esta iniciativa foi alvo de fortes críticas mesmo dentro do sector, devido à sua configuração e forma de funcionamento, com uma petição em poucos dias a conseguir mais de 20 mil subscritores. Pouco depois a iniciativa acabou por ser cancelada. Não vamos entrar sequer nessa polémica. Mas a situação actual obriga a pensar fora da caixa e procurar alternativas.

O crowdfunding, em condições normais, seria uma alternativa que muitos artistas e autores teriam interesse em explorar. Não é uma solução mágica, e pode não ser para todos, mas poderia permitir que pelo menos alguns autores e artistas pudessem respirar, auxiliados pelo seu público. A Internet permite a realização de concertos ou outro tipo de transmissões destinadas a um público que, face à situação actual, se vê confinado em casa e portanto está especialmente receptivo a este tipo de iniciativas. Por outro lado, o recurso a sistemas de micropagamentos voluntários neste contexto não é propriamente uma novidade, é bastante utilizado por streamers, podcasters, youtubers, etc.
Além disso, é uma medida que não custa um cêntimo ao Estado (e portanto não levanta os problemas relacionados com a justeza na forma de distribuição de fundos públicos), além de que permite aproximar artistas e autores da sua audiência.

Infelizmente, o Estado veio recentemente tornar esta opção bastante mais complicada para autores e artistas portugueses.

Quando queremos dar 1, 5 ou 10 euros a alguém que actua na rua, basta… dar. Quando pagamos 5, 10, 30, 100 euros por um bilhete para um espetáculo, basta pagar. Quando compramos seja um simples CD, uma colecção, uma discografia inteira, ou uma edição especial caríssima, não é preciso burocracias complicadas nem preencher papéis com todos os nossos dados pessoais e mais alguns.

Mas experimentem lá tentar doar 1 euro que seja a um artista ou autor…

Experimentem, por exemplo, dar 1€ para que a Shizamura possa editar a sua banda desenhada, ou para que a Carolina Pascoal possa realizar uma curta-metragem. Este é o ecrã que vos aparece:

dados apoiante
(imagem do site PPL.pt)

Para doar um mísero euro a um artista, terão de fornecer:

  • Nome completo
  • Data de nascimento
  • Morada de residência
  • País
  • Número de identificação fiscal
  • Número de documento de identificação

Este é mais um daqueles casos em que, apenas porque um processo qualquer (no caso, uma recolha de fundos) se digitalizou e agora ocorre através da Internet, o legislador acha que isso é justificação para aprovar um regime legal completamente oposto ao que existia quando a mesma situação ocorria por fora da Internet. Isto seria o equivalente, por exemplo, a exigir documentação completa a quem se atreve a comprar rifas a escuteiros ou dá uma moeda numa qualquer campanha de rua de recolha de donativos.

É por causa do terrorismo, pah!

A recolha destes dados é uma exigência legal.  O regime jurídico é composto pela Lei n.º 83/2017, Lei n.º 102/2015 e o Regulamento n.º 686/2019. Estes diplomas, pasme-se, visam o combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo(!!!).
Este é o sumário do Regulamento n.º 686/2019, o que especifica quais os dados que devem ser recolhidos:

“Regulamento dos Deveres Específicos de Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais e ao Financiamento do Terrorismo das Entidades Gestoras de Plataformas de Financiamento Colaborativo por Donativo ou com Recompensa”

Este Regulamento tem por base a Lei n.º 83/2017 ("Estabelece medidas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo"), que atribui à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) poderes de regulamentação (além da competência para fiscalizar). Estes poderes supostamente visariam assegurar que as obrigações previstas na lei seriam cumpridas com a extensão adequada aos riscos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo existentes em cada setor e à dimensão, à natureza e à complexidade das entidades obrigadas e das atividades por estas prosseguidas.

Portanto a ASAE acha mesmo estas medidas são as adequadas.

Não conseguimos expressar por palavras a profunda revolta e indignação que esta pretensa justificação nos provoca. Só na cabeça de burocratas securitários é que estas medidas podem ser consideradas sensatas e proporcionais aos fins a atingir - no caso, o combate ao branqueamento de capitais e terrorismo.

Esta visão Orwelliana, que não permite que um único euro possa ser doado sem que todo e qualquer doador tenha de fornecer todos os seus dados pessoais, independentemente do valor doado - não vá ser algum terrorista - prejudica seriamente muitas actividades. Ou talvez a lei presuma que todos os artistas, autores e em geral quem procura este tipo de financiamento são potenciais terroristas ou branqueadores de capitais, e, pelo sim pelo não, é melhor ter que colectar toda a informação dos doadores em extensas bases de dados.

Autores e artistas não são os únicos a recorrer a estas plataformas. Este tipo de angariação de fundos é frequentemente utilizado para financiar projectos ligados às diferentes artes, artistas independentes, organizações de jornalismo independente, projectos sociais, associações sem fins lucrativos (sim, também nos atinge a nós caso queiramos seguir essa via), campanhas de solidariedade, etc. Normalmente, sectores da sociedade onde reina a precariedade e uma absoluta falta de disponibilidade financeira.

São estes sectores, especialmente vulneráveis, que esta legislação atinge. São eles os danos colaterais da luta contra o branqueamento de capitais e terrorismo.

Pegando no exemplo do jornalismo: Estaremos desconfiados das 62 pessoas que dão em média 3,50 euros por mês ao Shifter? Ou estamos desconfiados do Fumaça, que ganhou vários prémios de jornalismo, mas que não sabe como há de manter-se de portas abertas a partir do mês que vem?
Diz-nos o Fumaça que “Salvar os média não partirá de quem tem poder”. Esta também é questão de poder: de desigualdade de poder. Foi o poder que aprovou esta lei, e quem sofre os seus danos colaterais não tem poder para ser ouvido.

Será razoável que apenas porque a doação é feita através meios digitais, não seja tratada da mesma forma que um pequeno donativo em dinheiro?
Num mundo em que o Estado promove constantemente a consciencialização das pessoas para a necessidade de protegerem a sua privacidade e os seus dados pessoais, e prevê pesadíssimas multas para empresas que abusam desses dados, faz sentido o mesmo Estado colocar este tipo de exigências para doações individuais pouco significativas? A recolha obrigatória de todos estes dados inibe as doações do público.

A legislação europeia que deu origem a estes diploma não obrigava a isto, não era necessário ir tão longe. Foi o legislador português que tomou esta opção, de sua livre iniciativa, e relegou para a ASAE aspectos cruciais. Como órgão de polícia que é (art.15º do DL n.º 194/2012), a ASAE revelou idêntica sensibilidade, no que respeita a lidar com direitos e respeito pelo princípio da proporcionalidade, à que temos visto noutras áreas.

Restam ainda algumas escapatórias. Recorrer a plataformas estrangeiras ou fazer a recolha por meios próprios é uma forma de contornar o problema (é o caso dos projectos de jornalismo que referimos), mas também implicam desvantagens, como o pagamento de taxas de câmbio ou por pagamento ao estrangeiro e não dispor de formas de pagamento nacionais como Multibanco ou MBWay, o que por um lado inibe doações e por outro retira parte da receita ao seu destinatário.

Mas é absolutamente indigno que, em Portugal, o Estado seja o principal obstáculo ao desenvolvimento de formas de financiamento alternativas e de novos modelos de negócio que são bastante mais ligados ao mundo digital, e que aproximam autores, artistas e outros profissionais do seu público.

Este tema não é novo, mas a pandemia do COVID-19 veio colocar a autores e artistas desafios como nunca antes enfrentaram. Numa questão que é extremamente complexa, a procura por novas soluções e alternativas de sustento deveria ser incentivada ao máximo pelo Estado. Infelizmente, opções infelizes do legislador são agora um obstáculo cujos danos colaterais atingem toda uma nova ordem de grandeza.

 

Extra: Pièce de résistance

Guardámos para o fim um pormenor delicioso. Não digam a ninguém, mas aqui que ninguém nos ouve:

  • Nada garante que os dados inseridos na plataforma de crowdsourcing correspondem a quem efectivamente paga o donativo. Já dando de barato que os dados inseridos sejam verdadeiros, basta optar pelo pagamento através de referência multibanco e a plataforma deixa de conseguir verificar se quem realiza o pagamento é a mesma pessoa que fornece as suas informações pessoais e gera a referência multibanco.
    Ou seja, a lei além de abusiva, é ineficaz.

  • No entanto isso não garante o anonimato, bem pelo contrário. É que todos os pagamentos são feitos através do sistema bancário, onde todos os intervenientes estão bem identificados e já existem medidas anti-branqueamento de capitais em funcionamento.
    Portanto, além de abusiva e ineficaz, a lei é também inútil e desnecessária.