Pela defesa dos direitos digitais em Portugal




Camera de CCTV

Recentemente, a imprensa deu destaque (TSF, Público, por ex.) a dois pareceres negativos da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), solicitados pelo Ministério da Administração Interna. Os pareceres são relativos a dois pedidos de autorização de instalação e alargamento de sistemas de videovigilância em locais públicos, em Portimão (ver parecer) e Leiria (ver parecer), submetidos pela Polícia de Segurança Pública (PSP). Tais pareceres mereceram a censura da CNPD em modos tais que a TSF, a primeira a dar a notícia, intitulou-a: “Proteção de Dados arrasa pedidos da PSP para videovigilância com inteligência artificial”.

Não foram, contudo, os únicos pareceres emanados da CNPD. Na mesma data, também por solicitação do Ministério da Administração Interna, a CNPD publicou ainda pareceres relativos ao alargamento da videovigilância na cidade de Olhão (ver parecer) e sobre o projecto instalação de videovigilância em Estremoz (ver parecer), nos quais a CNPD emitiu recomendações.

Segundo a CNPD, todos estes sistemas de videovigilância requeridos pela PSP para quatro cidade diferentes “implicam um controlo sistemático em larga escala”, com "inegável risco elevado [ou “significativo”, nos casos de Olhão e Estremoz] para os direitos, liberdades e garantias das pessoas, em especial dos direitos fundamentais à proteção dos dados e ao respeito pela vida privada, bem como à liberdade de ação", acrescentando a estes ainda o direito à não discriminação, nos casos de Leiria e Portimão.

Como a própria salienta, não cabe à CNPD pronunciar-se sobre o mérito da escolha da utilização destes meios de controlo sistemático em larga escala com inegáveis riscos significativos para os direitos, liberdades e garantias das pessoas. Nem tão pouco cabe à CNPD pronunciar-se quanto à proporcionalidade da utilização destes meios face aos fins visados.

Mas a nós cabe.

Quando estão em causa eventuais restrições a direitos fundamentais, tais restrições só podem acontecer quando estejam em causa outros direitos fundamentais. Além disso, tais restrições têm de respeitar o princípio da proporcionalidade, o que significa serem demonstradamente 1) adequadas ao fim visado (a forma escolhida tem de ser apropriada a alcançar o fim que se visa alcançar), 2) necessárias (ser indispensáveis; não existir uma alternativa eficaz que seja menos lesiva) e 3) proporcionais (proibição do excesso; não ir além do estritamente necessário).

Isto não é matéria de opinião, filosofia de vida, pensamento político ou outra. É simplesmente o nosso regime constitucional de restrição de direitos fundamentais, previsto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa e objecto de pacífica jurisprudência do Tribunal Constitucional.[1]

O mesmo é dizer que se estes três critérios - que são cumulativos - não estiverem preenchidos, as medidas em causa são inconstitucionais.

Estando então assente o enquadramento legal que permite a utilização de sistemas de videovigilância desta natureza, passemos a analisar a fundamentação apresentada pela PSP, à luz desses critérios.

Os pedidos da PSP e respectivos Pareceres da CNPD

Aparentemente, a PSP pretende instalar e alargar sistemas de videovigilância em larga escala um pouco por todo o país. Só em Portimão e Leiria, o número de câmaras chegaria às 61 em cada cidade. Infelizmente, a fundamentação destes pedidos à luz do princípio da proporcionalidade é simplesmente desastrosa.
Deixamos aqui alguns exemplos elucidativos.

Em Estremoz, o sistema de videovigilância é proposto num contexto em que “a criminalidade diminuiu significativamente no último ano na cidade, em especial no que diz respeito aos crimes contra as pessoas e contra o património - cuja prevenção é, recorde-se, a finalidade da instalação deste sistema de videovigilância". (Parecer 2019/01, pg 2).
Apesar disso, o Comando Distrital de Évora da PSP considera na sua fundamentação que "a confiança dos cidadãos nestes sistemas e na sua atualização tem vindo a crescer de forma significativa, existindo uma efetiva disponibilidade das pessoas para abdicar, na medida do necessário e em termos proporcionais, da sua privacidade em função da colocação de sistemas de videovigilância".
Aprecie-se como, em clara violação do princípio da proporcionalidade - porquanto se confessa logo à partida que o sistema é desnecessário - a PSP insiste ainda assim num sistema que implica um controlo sistemático em larga escala com inegável risco significativo para os direitos, liberdades e garantias das pessoas, apenas com base em considerações subjectivas do Comando Distrital de Évora sobre o que acha ser a opinião pública.

Em Portimão, as finalidades deste sistema vão muito para além da prevenção do crime. Para a PSP, também serviriam para combater “incivilidades” ou para repressão de infracções estradais. Como bem aponta a CNPD, isto é feito “sem qualquer ponderação, à luz do princípio da proporcionalidade, que não seja a consideração da eficácia (e alegado menor custo) do desempenho da função de prevenção e repressão criminais, sem atender ao impacto que da utilização de tal sistema resulta ou pode resultar para os direitos fundamentais dos cidadãos”.

Em Leiria o plano é mais que triplicar as câmaras existentes. As finalidades indicadas vão também desde a prevenção de “incivilidades” ao terrorismo, com infracções estradais pelo meio.

Tanto em Leiria quanto em Portimão as câmaras possuiriam também funcionalidades de rotação e ampliação de imagem de alta capacidade, permitindo captar com grande precisão imagens de pessoas e veículos. Foi ainda pedida autorização para a captação de som, sem qualquer demonstração da adequação e necessidade dessa funcionalidade, nem critérios de captaçao de som.

Outros aspectos curiosos dos pedidos dirigidos à CNPD, referidos nos pareceres, incluem a utilização de funcionalidades de leitura automática de matrículas; interconexão com outras bases de dados, não especificadas; alta escabilidade e conectividade, permitindo o crescimento do sistema e a sua integração com outros sistemas eletrónicos de segurança patrimonial, também não especificados (serão privados?); gravação de imagem em cartões de memória SD nas próprias câmaras, com todos os riscos de acesso indevido que tal implicaria; e simples desconhecimento ou confusão sobre o que é um Encarregado de Protecção de Dados e quais as suas funções nos termos do RGPD. Mas fica pior…

Inteligência Artificial e videovigilância

Não foi nada do que vimos até agora que chamou a atenção das pessoas e da imprensa. Foi sim o facto de, tanto para Leiria como para Portimão, os sistemas de videovigilância incluirem pela primeira vez a utilização de Inteligência Artificial. Inteligência artificial, algoritmos, machine learning, soft recognition, detecção automática, filtros… todos os chavões a que temos direito constam das fundamentações apresentadas. Por questões de dimensão e objecto do presente texto, não podemos aqui abordar a problemática da utilização de “Inteligência Artificial” (expressão aqui usada em sentido lato) em sistemas de videovigilância. Podemos apenas adiantar que a necessidade de transparência e avaliação de todos estes sistemas tem vindo a ser reconhecida por várias entidades noutros países. Por exemplo, o governo alemão nomeou uma comissão de peritos com competências inter-disciplinares para redigirem um documento com recomendações para a aplicação de IA, incluindo com grande relevo a sua aplicação em aplicações de segurança. Esta comissão concluiu, entre outros aspectos de precaução, por uma necessidade de avaliação preventiva de sistemas que usam IA em áreas críticas da sociedade (o relatório final e um sumário executivo estão disponíveis em Inglês). O Supervisor Europeu de Protecção de Dados reconhece que esta tecnologia levanta muitas questões de direitos fundamentais sobetudo quando usada em larga escala. A Comissão Europeia está a ponderar medidas para regulamentar a aplicação destas tecnologias, tal como o Congresso dos EUA. A cidade de São Francisco, Califórnia, aprovou já uma proíbição da tecnologia de reconhecimento facial na cidade, e até o CEO da Alphabet, detentora da Google, Sundar Pichai, defendeu uma moratória para esta tecnologia enquanto o seu uso não estiver regulamentado.

É de realçar que a PSP declarou posteriormente ao Jornal i que não usará Inteligência Artificial - contra tudo quanto consta expressamente das fundamentações apresentadas e pareceres da CNPD. Segundo o Jornal i avança: "o intendente Mário Oliveira, do Comando Distrital de Faro, esclareceu que, nos dois projetos chumbados, o objetivo não passava pela utilização de inteligência artificial, mas sim de ‘câmaras inteligentes’”...

Voltaremos a este tema em momento posterior, já que é urgente lançar este debate de forma alargada em Portugal, para que possamos decidir o que aceitamos, democraticamente e de forma informada sobre os riscos e benefícios destas tecnologias. Para já, cumpre apenas demonstrar que não é sequer necessário nele entrar para demonstrar como estes sistemas de vigilância violam direitos fundamentais.

Posição da D3

Quem oiça estas propostas poderá ficar com dúvidas sobre a que país é que estas se destinam. É que Portugal é um país comprovadamente seguro (o terceiro país mais seguro do mundo segundo o Índice Mundial da Paz) e onde a criminalidade desceu 42% na última década segundo o Relatório Anual de Segurança Interna 2018. Neste contexto, dispensam-se bem derivas securitárias de controlo sistemático e em larga escala dos seus cidadãos. Ainda para mais, numa altura em que a Europa cada vez mais se consciencializa para a protecção dos dados pessoais e da privacidade, tomando a liderança mundial nesta àrea com a aprovação do Regulamento Geral de Protecção de Dados, diploma legislativo que tem sido replicado um pouco por todo o mundo. No seu artigo 25.º, o RGPD, impõe os princípios da proteção de dados “desde a conceção” e “por defeito”. Segundo os pareceres da CNPD, nenhuma das propostas da PSP tem estes princípios em conta.

As posições tomadas pela CNPD, pese embora as limitações legais e de meios que a condicionam, merecem portanto todo o nosso apoio e louvor. Podia a CNPD ir até mais longe nas ilações que tira da argumentação legal que apresenta: É que o estrito respeito pelos direitos fundamentais e pelo princípio da proporcionalidade obriga a que os pedidos de autorização sejam fundamentados câmara a câmara, justificando-se obrigatoriamente a necessidade de cada uma, bem como a necessidade de cada funcionalidade associada a cada câmara, não sendo de admitir fundamentações genéricas e abstractas para grandes sistemas de vigilância a espalhar por uma cidade ou por grandes áreas de uma cidade, que por si só é já uma denegação do princípio da proporcionalidade.

Da análise acima resulta que os sistemas que a PSP quer instalar por todo o país são medidas claramente inconstitucionais. Difícil é dizer se é mais chocante isso, ou o facto de aparentemente a PSP fazer tábua rasa do enquadramento legal e constitucional desta questão. Utilizando a expressão popular, fossem os direitos fundamentais porcelana fina e frágil cujo manuseamento requer toda a delicadeza, a PSP seria o elefante na loja. É caso para relembrar que os fins não justificam os meios. Isto sem isentar de responsabilidades o Ministério da Administração Interna, que admite tais pedidos.

Este episódio torna evidente que a PSP não está capacitada para lidar com estas questões. Seja por falta de formação, por natural perspectiva própria resultante do desempenho da sua actividade no terreno (daí que Órgãos de Polícia Criminal, Ministério Público e Juízes tenham papéis separados e delimitados - o princípio primário da separação de poderes), ou eventualmente por ideologia ou política. Seja por que razão for, torna-se evidente que não pode ser deixada à polícia a última palavra nestas matérias. Infelizmente, os únicos critérios que parecem conhecer são a eficácia e extensão da vigilância e o menor custo, não só em dinheiro mas também em esforço.
Nesse sentido, entendemos que as recomendações do Conselho da Europa (parágrafo 81), com base numa auditoria da Inspeção Geral da Administração Interna, no sentido de ser necessário aumentar a formação sobre direitos humanos dada às forças policiais, são acertadas, devendo estas no entanto ter um âmbito alargado, por forma a abarcarem a globalidade dos direitos fundamentais.

É hoje também claro que a última alteração à Lei n.º 1/2005, realizada em 2012, e que acabou com a obrigatoriedade de parecer positivo da CNPD para a instalação de sistemas de câmaras fixas em locais públicos, foi um erro histórico que urge corrigir. Aliás, tendo em conta o ritmo de evolução tecnológica, seria de esperar uma re-avaliação da adequação do enquadramento legal com maior frequência. A massificação das câmaras de videovigilância, associada a uma capacidade tecnológica incomparável à de poucos anos atrás, tanto ao nível da resolução como do zoom, além das novas capacidades de processamento para correr algoritmos de reconhecimento de padrões, trazem novos perigos e ameaças a direitos fundamentais, não antevistos pelo legislador.

Não esquecer: Sobrevigilância provoca arrefecimento social

O impacto negativo da vigilância ubíqua tem vindo a ser demonstrada por vários estudos científicos. Consensualmente, o principal risco é o da auto-censura: as pessoas alteram conscientemente o seu comportamento de modo a não suscitarem suspeitas de acordo com o que sabem ou julgam ser o “normal”, de modo a não terem de lidar com as forças de segurança. Este condicionamento do comportamento individual e colectivo leva a uma redução efectiva da liberdade de se informar, de comunicar, e no limite, de pensar, sendo “corrosivo para o discurso político”, segundo tanto Jon Penney como Bruce Schneier num artigo de 2017 da Harvard Magazine. Bruce Schneier, um reconhecido perito em segurança e privacidade e fellow do Berkman Klein Center for Internet and Society na Universidade de Harvard, explica num excerto do livro “The End of Trust”, publicado na revista Wired como a vigilância permanente pode limitar a evolução social. Esta evolução acontece explorando os limites do que é legal e o que é moral. Mas as pessoas estão muito menos disponíveis para se movimentarem ou mesmo quebrarem esses limites se estiverem permanentemente a ser vigiadas e puderem sofrer consequências por qualquer mínima infracção. A página Social Cooling mostra de maneira acessível como a vigilância ubíqua pode levar a uma maior aversão ao risco e reforça a possibilidade de limitar a capacidade de inovação social.

Todos estes aspectos constituem uma limitação das liberdades garantidas por um Estado de Direito, e são sobretudo graves quando não existe motivo que as justifique, como se pode ver pela decrescente taxa de criminalidade na via pública mostrada nas estatísticas oficiais - a criminalidade violenta diminuiu 42% numa década.

Em conclusão

Urge reenquadrar o debate: Liberdade e privacidade são direitos humanos, tal como a segurança, pelo que a discussão deverá ser sempre enquadrada no regime de direitos fundamentais vigente, sem concessões a visões hiper-securitárias.

Ninguém é livre sob vigilância permanente.

 


 [1] De igual forma, a Lei n.º 59/2019, de 8 de Agosto (aprova as regras relativas ao tratamento de dados pessoais para efeitos de prevenção, deteção, investigação ou repressão de infrações penais ou de execução de sanções penais), tem inúmeras referências ao princípio da proporcionalidade, desde logo o seu artigo 4º que estipula que “o tratamento de dados pessoais deve processar-se no estrito respeito pelos direitos, liberdades e garantias das pessoas singulares, em especial pelo direito à proteção dos dados pessoais”, e que os dados devem ser “adequados, pertinentes e limitados ao mínimo necessário à prossecução das finalidades para as quais são tratados”.
Esta lei veio transpôr a Directiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Abril de 2016 (relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas autoridades competentes para efeitos de prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais, e à livre circulação desses dados). No seu Considerando 26, a Directiva estipula também que sistemas de videovigilância podem ser utilizados “para efeitos de prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais, incluindo a salvaguarda e a prevenção de ameaças à segurança pública, desde que estejam previstas na lei e constituam uma medida necessária e proporcionada numa sociedade democrática, tendo devidamente em conta os interesses legítimos da pessoa singular em causa”.
Sobre o enquadramento legal, ver ainda o artigo de Alexandre Sousa Pinheiro, no Público.