A Reforma Europeia do Direito de Autor tem sido discutida vai já para quase três anos no Parlamento Europeu, mas só recentemente em Portugal se começou a falar no assunto. A prévia falta de acompanhamento do tema, a sua especificidade e complexidade faz com que seja frequentemente discutido sob pressupostos incorrectos.
O presente texto pretende ser uma espécie de crash course destinado a quem precisar de obter rapidamente uma perspectiva geral sobre o tema, contendo também as posições da D3. É o mínimo dos mínimos, pelo que ainda é bastante.
Porque era necessária uma reforma?
Hoje em dia a Internet veio democratizar a produção cultural. Vive-se uma época de saudável efervescência de actividade criativa e ampla produção de conteúdos na rede. No entanto, a lei não acompanhou essa evolução e - pasme-se - muitas dessas actividades caem hoje numa área cinzenta a nível legal. A legislação vigente tem mais de 17 anos e vem de uma altura em que a Internet pouco tinha a ver com a de hoje. Ainda por cima, a legislação europeia não prevê um conceito de “fair use” (conceito Americano) na utilização de conteúdos onerados por direitos autorais, que permite aos tribunais uma avaliação caso a caso dos novos "usos justos" que a tecnologia vai permitindo e potenciando. Em vez disso, temos um sistema rígido de excepções e limitações específicas para cada tipo de utilização de conteúdos onerados por direito de autor (ex: citação, paródia, uso para fins de ensino, etc.), em que tudo o que não vier especificamente previsto na lei, não é permitido. Em especial, conteúdos produzidos por utilizadores (user generated content) como fan fics, remixes, memes e outras reutilizações de conteúdos, que são hoje parte integrante da cultura da Internet, têm um situação legal pouco clara, isto quando não são plenamente ilegais.
Para agravar a situação, a lei está feita de uma maneira em que tudo o que corresponde a obrigações que os cidadãos devem respeitar é de implementação obrigatória por parte dos Estados-membros nas suas leis nacionais, enquanto que tudo o que corresponde a direitos dos cidadãos (as excepções e limitações) na utilização de conteúdos, é de implementação opcional. Tal tornou o quadro jurídico do tema numa autêntica manta de retalhos a nível europeu. O que é legal fazer em Portugal pode já não ser em Espanha e vice-versa.
Na consulta pública realizada pela Comissão Europeia, e apesar de todos os obstáculos levantados (não havia formulário, era necessário preencher um questionário de 80 perguntas e enviar por email), a participação dos cidadãos foi massiva e bateu o record de sempre para este tipo de consulta, por uma esmagadora margem.
Quem mais defendeu a necessidade de reforma foram os cidadãos. Autores, editoras, entidades de gestão colectiva e afins preferiam manter o status-quo.
Os cidadãos pediram essencialmente:
- Um regime único de direito de autor para toda a Europa, fácil de entender, que não deixasse margem para incertezas jurídicas. Nomeadamente, a harmonização das excepções, tornando-as de transposição obrigatória (ex: citação, crítica, paródia, liberdade de panorama, etc.).
- Criação de novas excepções para conteúdos gerados pelos utilizadores (memes, fanfics, remixes, etc).
- A criação de uma excepção aberta de “fair use” que pudesse abranger novos tipo de utilizações, no futuro, de forma a que a legislação de direito de autor, tipicamente rígida, não ficasse novamente ultrapassada em pouco tempo.
- Definir claramente os direitos dos utilizadores quando utilizam conteúdos sem fins comerciais.
- Um menor período de duração dos direitos autorais, que actualmente vigoram durante a vida do autor e mais 70 anos.
O que está em causa?
Avancemos para o dia de hoje. O que está em causa? Nada do que falámos anteriormente. O que aconteceu?
Lobbying. Em doses brutais.
Apesar dos melhores esforços de pequenos grupos de activistas e organizações da sociedade civil na defesa do interesse público, o lobby dos titulares de direitos investiu fortemente nesta reforma, obtendo resultados francamente visíveis. Uma a uma, os cidadãos foram perdendo cada batalha e todas as mudanças pretendidas nunca chegaram ou foram saíndo dos textos das propostas da Comissão Europeia, do Parlamento Europeu e do Conselho.
Ficaram essencialmente as medidas que foram defendidas pelo lobby dos detentores direitos e que correspondem todas elas a medidas que visam aumentar as suas receitas por via legislativa.
Em particular, destaca-se:
- Art. 3º
Prevê que a actividade de prospecção de texto e dados (text and data mining) passe a ser enquadrada numa excepção, i.e., que tal actividade seja proibida fora do âmbito de tal excepção - a não ser mediante o pagamento de licenças. A proposta de excepção abrange apenas organismos de investigação, deixando de fora investigadores que não estejam afectos a um centro de investigação, jornalistas, startups, entidades públicas, instituições de património e cidadãos. - Art. 4º
Prevê uma mudança na excepção para fins de ensino que abre porta à cobrança de uma taxa para a utilização digital de conteúdos, análoga à taxa da cópia privada, que escolas e universidades teriam de suportar. É extremamente restritiva, permite apenas o uso da excepção dentro de estabelecimentos de ensino ou em redes electrónicas privadas. Permite ainda aos Estados-membros eliminarem a excepção obrigando as escolas e universidades a negociarem licenças com os representantes dos titulares dos direitos. - Art. 11º
Conhecido pela designação “taxa do link”, obriga a que as plataformas de partilha de conteúdo necessitem de obter uma licença para que os seus utilizadores possam partilhar notícias naquela plataforma, ou para que as plataformas possam “linkar” para os sites de notícias. Até hoje ainda ninguém percebeu exactamente que tipo de links estariam sujeitos ao pagamento.
É uma má ideia - até mesmo seus maiores defensores o admitem! - com péssimos resultados demonstrados pelas experiências anteriores em Espanha e Alemanha.
E que melhor forma de combater as fake news que taxar a partilha de conteúdos jornalísticos legítimos e fidedignos… - Art. 13º
A estrela da companhia: Filtros de censura, máquinas de censura, filtros de upload, Filtranet… como queiram chamar.
Prevê que as plataformas de partilha de conteúdos tenham de recorrer a filtros prévios que verificam todos os conteúdos enviados pelos utilizadores e impeçam a publicação quando verificarem a existência de conteúdos onerados por direitos autorais cujos autores não autorizam a sua utilização. Problema: O facto de um conteúdo ter direitos autorais não quer dizer que não possa ser utilizado. É para isso que serve o “fair use” Americano e as nossas excepções, ao abrigo das quais ocorre imensa actividade e produção de conteúdos.
Portanto as plataformas ou implementam filtros de censura, OU pagam o licenciamento de todos os conteúdos que sejam enviados pelos seus utilizadores. Claramente uma falsa escolha.
Em resumo, hoje em dia estamos apenas numa guerra defensiva. A reforma vai ser má, péssima ou terrível. Não ter qualquer reforma já seria melhor que ter qualquer das opções em cima da mesa para esta reforma.
Para maior detalhe sobre os filtros de censura, abram, com cuidado, a caixa de pandora do Art. 13º:
A Caixa de Pandora do Artigo 13
É uma restrição desproporcional da liberdade de expressão dos cidadãos
No mundo digital em que vivemos, a liberdade de expressão conhece grande eco online, o que dá aos operadores privados nesse ambiente um poder e responsabilidade imensos, a que estamos mais habituados a associar a poderes estatais. Limitar a liberdade de expressão, ao filtrar os conteúdos que os utilizadores entendam partilhar, é uma questão de primeira importância. É uma questão de direitos fundamentais. Nesse sentido, a restrição de um direito fundamental deve seguir critérios de proporcionalidade, apenas sendo admissível tal restrição quando estritamente necessária e adequada ao fim a alcançar. Não se menospreza os desafios que os detentores de direitos enfrentam na era digital, mas é manifestamente desproporcional submeter todos os conteúdos enviados pelos utilizadores a uma monitorização prévia.
A liberdade de expressão dos cidadãos deve estar acima dos - perfeitamente legítimos - interesses económicos dos detentores de direitos. Principalmente quando a esmagadora maioria dos conteúdos enviados para a rede não atinge os interesses económicos dos detentores de direitos.
A liberdade de expressão não deve ser submetida a filtros prévios de qualquer tipo. Quaisquer problemas que advenham do livre exercício da liberdade de expressão devem ser tratados a posteriori, como acontece, por exemplo, com todos os crimes que podem ser provocados pela utilização de palavras ou outras formas de expressão, como sejam as injúrias, difamação, plágio, etc. Nem sequer essas práticas, que são crime, poderiam alguma vez justificar filtros prévios à liberdade de expressão de um cidadão. Por maioria de razão ainda menos se justificam para a tutela de direitos autorais.
Não é respeitada a Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia
O Tribunal de Justiça da União Europeia já se pronunciou precisamente contra um sistema de filtragem com carácter preventivo, afirmando explicitamente que não existe uma obrigação de vigilância geral das plataformas sobre os conteúdos.
Tal obrigação de vigilância geral [general monitoring] não respeita os direitos fundamentais dos cidadãos, previstos na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Entendeu o Tribunal, que além de não cumprir o artigo 3.°, n.° 1, da Directiva 2004/48, que determina que as medidas para assegurar o respeito dos direitos de propriedade intelectual não devem ser desnecessariamente complexas ou onerosas, estará também em causa os artigos 8.° e 11.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, isto é, o direito à protecção dos dados pessoais e a liberdade de receber ou de enviar informações.
Uma obrigação de filtrar todos os conteúdos enviados pelos utilizadores para uma plataforma é precisamente uma obrigação de vigilância geral e activa de conteúdos.
Um filtro automático não consegue distinguir utilizações legítimas de utilizações não legítimas de conteúdos
A lei permite expressamente utilizações livres de conteúdos onerados por direitos autorais. Nessas situações, não é necessário o consentimento do autor para a utilização do conteúdo. Entre essas utilizações, a maior parte dos países prevê, por exemplo: a paródia de uma obra, a citação para crítica, opinião, discussão e investigação científica, a cópia privada, ilustração para fins de educação e ensino, entre muitas outras. Portugal, até ao momento, era dado como um exemplo a seguir no que toca a estas matérias.
Mas um filtro automático de monitorização não consegue distinguir entre usos legítimos e ilegítimos. Um vídeo de paródia musical utiliza exactamente a mesma composição musical que o original, que parodia. Software Livre ou de Código Aberto assenta na partilha e reutilização - perfeitamente legal - de código (de programação informática) cuja legalidade ou ilegalidade não é passível de ser aferida por um filtro. Uma crítica a uma notícia ou uma opinião sobre um livro terá sempre de usar pelo menos partes da notícia ou do livro. Como se sabe, bastam alguns segundos para que um vídeo ou música possa ser identificado, tal como bastará apenas algumas frases para um texto ser identificado. Tal já é imensamente problemático no sistema atual, em que constantemente acontecem casos de identificação abusiva de conteúdo perfeitamente legítimo. Sistemas automáticos de remoção de conteúdo foram também responsáveis pela remoção de vídeos que constituíam prova de violações de Direitos Humanos na Síria.
Esta lei irá ainda fazer desaparecer os recursos educativos abertos, assim como a publicação de artigos científicos em acesso aberto. É impossível criar recursos educativos ou artigos científicos sem reutilizar partes ou excertos de outras obras. Quando um filtro automático encontrar uma parte ou excerto de outra obra irá impedir a publicação do recurso ou do artigo, uma vez que os filtros são cegos às excepções. Mesmo que os autores dos recursos ou artigos queiram publicá-los em acesso aberto.
Plataformas que alojam conteúdo enviado por utilizadores não são juízes de direito
Actualmente as plataformas que alojam conteúdo enviado por utilizadores já podem ser responsabilizadas pelos conteúdos que alojam desde que, sempre que tiverem conhecimento ou sejam notificadas da presença de conteúdos ilegítimos, não procedam diligentemente e rapidamente no sentido de remover tais conteúdos. Este regime actualmente em vigor, ainda que não isento de problemas, ainda assim revela uma certa ponderação dos interesses em jogo.
Pelo contrário, o regime agora proposto, pretende responsabilizar as plataformas, que são apenas intermediários, tal como se fossem elas próprias - e não os seus utilizadores - a enviar os conteúdos. Na prática, será de esperar que essas empresas defendam antes de mais os seus legítimos interesses económicos e comerciais. Colocadas perante a possibilidade de serem responsabilizadas pelos conteúdos que os utilizadores enviam, irão agir de forma preventiva e conservadora, censurando primeiro e perguntando depois. Em caso de mínima dúvida, as empresas colocar-se-ão sempre do lado dos detentores de direitos, não do lado da liberdade de expressão dos cidadãos, dada a assimetria de poder existente.
Estas empresas não vão ser os novos juízes das liberdades. Tais empresas:
- não têm qualquer legitimidade ou competência para desempenhar esse papel;
- não têm também qualquer tipo de incentivo para o fazerem de forma imparcial;
- nem sequer estão interessadas em fazê-lo.
Nestas circunstâncias, ter razão de pouco valerá a um mero utilizador.
O regime actual já responsabiliza as plataformas pelos conteúdos enviados pelos utilizadores, de uma forma equilibrada. Não se justifica um agravamento deste regime.
Utilizadores serão culpados até prova em contrário; salvaguardas existentes são insuficientes
Além de impedir utilizações livres perfeitamente legítimas e de tornar as plataformas nos novos juízes das liberdades, o regime proposto torna os utilizadores culpados até prova em contrário. Nos casos em que um conteúdo enviado pelo utilizador seja apanhado no filtro, a quem poderá aquele recorrer? Nem os detentores de direitos nem as plataformas serão parte imparcial na análise do caso. E qual será o regime legal aplicável, dado que as excepções e limitações do direito de autor, por serem opcionais para os Estados-Membros, são diferentes em cada Estado-Membro? Poderia um cidadão Português usar livremente do seu direito de “citação para crítica”, previsto pela lei Portuguesa, para efectuar uma crítica a uma obra de Slavoj Žižek numa dessas plataformas, quando a lei Eslovena não contempla tal excepção?
Os detentores de direitos defendem a necessidade dos filtros de upload pois dizem que o ónus de identificar conteúdo ilegítimo lhes é demasiado oneroso. No entanto, acham que é razoável que os cidadãos tenham de recorrer aos tribunais a fim de recorrer de uma “filtragem” errada. O Youtube, sozinho, conta com cerca de 300 horas de novo conteúdo a cada minuto que passa. Se alguém quisesse assistir a todos os vídeos que foram enviados para o Youtube durante uma determinada hora, necessitaria de ficar mais de quatro anos a assistir a vídeos durante 12 horas por dia para os conseguir ver a todos. Nesta escala colossal, mesmo que um filtro tenha uma margem de erro reduzida em termos percentuais, irá sempre resultar num número enorme de falhas e falsos positivos.
E se as plataformas não são juízes de direito e não têm qualquer incentivo para decidir de forma imparcial, será então razoável fazer pender sobre os cidadãos o ónus de recorrer aos tribunais por causa de vídeos erradamente removidos? Claro que a maioria não o fará. Mas mesmo concedendo que muitos até o façam, vamos inundar os nossos tribunais de casos destes?
Irá reforçar monopólios existentes, prejudicando PMEs europeias
Se esta legislação eventualmente passar, as grandes tecnológicas americanas terão os meios para a implementar e fazer cumprir. Todas as outras concorrentes, nomeadamente startups e pequenas e médias empresas europeias, não possuem os mesmos meios, pelo que o mercado tenderá a concentrar-se ainda mais. A Europa estará assim a agravar a sua situação de dependência tecnológica, já de sobremaneira deficitária.
Uma vez criadas e implementadas as soluções de filtragem automatizada, não será difícil de imaginar que essa tecnologia possa dar origem a um novo serviço, em que empresas como a Google disponibilizem a terceiros o seu serviço de filtragem, como aliás já acontece com o Google Analyics no respectivo mercado, que garante ao Google acesso a informação sobre o tráfego da grande maioria dos sites da Internet. Um serviço semelhante, para filtragem de conteúdos, dar-lhe-ia também um acesso monopolista sobre todos os conteúdos que são enviados para a Internet.
O que NÃO está em causa?
Esta é pequena, mas merece uma secção própria de tão frequente que é: não está em causa a pirataria. Repete-se o alerta à navegação: não está aqui em causa a pirataria. Ao contrário do que tem passado em alguns meios de comunicação (cof cof, narrativa vinda de certos lobbies, cof cof), nada disto tem efeitos nos chamados sites piratas. Sites como o The Pirate Bay são tão ilegais à luz da lei actual como serão à luz de qualquer das propostas actualmente em discussão. E consta que têm intenções de cumprir a futura lei tanto quanto cumprem a actual.
Quem está a favor, quem está contra?
A divisão de tropas é a seguinte: A favor desta reforma está apenas quem dela beneficia economicamente.
Contra ela estão todos os outros. Not even kidding.
Académicos, instituições de investigação de direito de autor organizações de direitos digitais e de direitos fundamentais, comunidades de conhecimento aberto, comunidades de software livre, criadores independentes, start-ups, altas figuras da Internet, organizações de acesso aberto e de ciência aberta, o relator das Nações Unidas para a liberdade de expressão, plataformas de desenvolvimento de software, plataformas abertas de gestão de conteúdos, pequenos editores de notícias… [vamos cortar aqui por uma questão de economia de espaço, favor consultar antes o link acima].
Mas a Google…
O lobby dos detentores de direitos reduz a lista acima à mera acção lobista da Google. E reduz a participação massiva dos cidadãos, que acontece desde o primeiro momento - o da consulta pública - à utilização de “bots”.
É normal que o faça. Não é normal que jornalistas vão na cantiga.
A Google já tem o mais poderoso sistema de content-id do mundo, não terá grande problemas em cumprir, e até pode passar a disponibilizá-lo como serviço. E se estas medidas passarem, tornar-se-ão numa enorme barreira à concorrência, complicando imenso a entrada de novos concorrentes no mercado. De uma forma ou de outra, a Google parece sair sempre a ganhar…
Platform liability & value gap: o pano de fundo
O grande argumento dos detentores de direitos é um caso clássico de causalidade vs correlação. O argumento é apresentado da seguinte forma:
- Detentores de direitos não estão a fazer dinheiro suficiente na Internet;
- Google e afins fazem muito dinheiro;
- Google e afins fazem dinheiro por causa dos conteúdos dos detentores de direitos.
Sim, a actividade de um motor de pesquisa está directamente relacionada com conteúdos que não são seus (mas se tivesse de pagar por eles, nunca teríamos tido motores de pesquisa na Internet).
Sim, o Youtube beneficia economicamente de um vídeo de gatinhos em que é usada uma música famosa.
Sim, o negócio do Facebook depende dos conteúdos que nós próprios lá colocamos, incluindo links para notícias.
Mas é no mínimo ingénuo e no máximo intelectualmente desonesto afirmar que existe uma relação de causalidade entre a utilização desses conteúdos em específico e a fortuna da Google, ou entre a fortuna da Google e as dificuldades que os detentores de direitos passam, por forma a justificar a intervenção do legislador.
Na mesma lógica, também a IKEA fará dinheiro através da indústria da construção civil, os taxistas através da indústria automóvel, e os nutricionistas através das cadeias de fast-food. Vamos pôr os primeiros a pagar taxas aos segundos?
A utilização de conteúdos que é feita pelos utilizadores do Youtube, das duas uma: ou é legal, ou não é legal. Todas as utilizações legais - que cabem dentro das excepções ou "fair use" - são legítimas e não deve ser cobrado qualquer valor (devem sim ser criadas novas excepções para as novas utilizações comuns que não prejudicam a exploração económica da obra pelo detentor de direitos). Já as utilizações ilegais devem ser removidas, e o Youtube já tem ferramentas que o permitem fazer. Não há aqui qualquer problema a resolver, com excepção da utilização abusiva das ferramentas de censura do Youtube, por parte dos detentores de direitos.
Na legislação actual, as plataformas já podem ser responsabilizadas, através do sistema de notice and takedown. Sempre que as plataformas tomem conhecimento ou lhes seja comunicada a presença de um conteúdo ilegal, se o conteúdo não for removido rapidamente, as plataformas respondem legalmente por esse conteúdo. Este é um regime que, não sendo isento de abusos por parte dos detentores de direitos, é ainda assim revelador de uma certa ponderação dos interesses em jogo. Os detentores de direitos já têm as ferramentas que precisam para lidar com conteúdos ilegais, não se justifica o recurso a filtros de censura prévia.
De qualquer forma, foi este o argumento que os detentores de direitos criaram. Deram-lhe o nome de “value gap” e venderam a ideia a alguns políticos.
Calhou bem o facto de as grandes plataformas serem todas Americanas: no Parlamento Europeu é politicamente muito fácil ir contra elas. Também são plataformas que noutros domínios, nomeadamente na Privacidade, têm tradicionalmente pouco respeito pelos utilizadores.
Nós bem o sabemos…
Assim, muitos políticos não hesitaram em pegar nesta bandeira. Muitos até com boas intenções. E por falar em intenções…
Se lerem apenas uma coisa, leiam esta:
Se esta lei afectasse apenas a Google, Facebook e afins, nós estávamo-nos bem nas tintas para ela.
Nós somos os primeiros a apontar os problemas levantados pela Google em termos de concorrência e privacidade. De entre as comunidades que se opõe a esta reforma fazem parte as pouquíssimas pessoas à face da Terra que, por princípio, se recusam usar serviços da Google, Facebook ou Microsoft, entre outros. Mas esta lei é um tsunami que leva tudo à frente, sem qualquer consideração pelos danos colaterais que provoque.
Perante as nossas críticas, os detentores de direitos avançam sempre respostas que assentam na sua situação económica difícil ou salientam as supostas boas intenções por trás desta legislação. Não duvidamos de uma nem de outra. Mas críticas sobre as graves consequências de uma determinada legislação não são respondidas com considerações sobre aquelas que em teoria seriam as suas boas intenções. De igual forma, considerações sobre a situação difícil de detentores de direitos também não dão resposta aos problemas apontados às consequências previsíveis de determinada opção legislativa. Por outras palavras, não basta dizer que a situação económica é difícil e que é preciso resolvê-la, para fundamentar a escolha da opção legislativa A, em vez da B ou da C - ou até de nenhuma delas. Tentar resolver-se estas questões através do Direito de Autor trará consequências e danos colaterais sobre direitos fundamentais basilares de todos os cidadãos.
Qualquer restrição de direitos fundamentais tem obrigatoriamente de respeitar o princípio da proporcionalidade que, entre outros requisitos, exige que as medidas escolhidas pelo legislador sejam as estritamente necessárias ao objectivo a alcançar, nomeadamente que não disponha o legislador de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo objectivo.
Não é - de forma gritante - o caso.
As chamadas gigantes tecnológicas colocam desafios a que a Europa deverá encontrar resposta. Mas essa resposta não pode ser dada através do Direito de Autor, sob pena de se incorrer em violações de direitos fundamentais dos cidadãos - em que os filtros de censura são apenas o caso mais flagrante. O Direito da Concorrência seria a solução mais adequada. A nível fiscal, há também questões relevantes a resolver relativamente ao pagamento de impostos dessas empresas. Já em relação aos detentores de direitos, nada impede o Estado de apoiar financeiramente os sectores que bem entender. Caso se opte por soluções legislativas que obriguem um sector a financiar outro, sem mediação estatal directa, tais esquemas não devem conduzir ao sacrifício de direitos fundamentais dos cidadãos.
Não pedimos muito:
Os nossos direitos fundamentais não são negociáveis.
Uma Internet livre também não.