Pela defesa dos direitos digitais em Portugal




Em 2021 e 2022, a taxa da cópia privada custou aos Portugueses mais de 31 e 35 milhões de euros, respectivamente.

Segundo o relatório e contas da AGECOP (Associação para a Gestão da Cópia Privada), em 2021 aquela entidade debitou 31.877.700,25 € às entidades competentes (vendedores), por conta da taxa da cópia privada. O valor recebido foi de 31.257.448,92 €.
Já o ano passado, pagámos mais de 35 milhões de euros. O Relatório e Contas de 2022 da AGECOP indica que as compensações declaradas foram de 35.684.346,93€, tendo sido os valores recebidos de 36.229.997,56€.

A taxa da cópia privada é cobrada aquando da aquisição de aparelhos com capacidade de reprodução, como telemóveis, computadores, discos, impressoras, scanners, entre outros, e visa compensar um alegado e altamente discutível prejuízo sofrido pelos autores, que ocorre quando um consumidor faz uma cópia, para uso pessoal e privado, de uma obra que adquiriu.

Recorde-se que o legislador nacional nunca demonstrou esse “possível prejuízo” decorrente da realização de cópias privadas pelos cidadãos, considerado pela Directiva 2001/29/CE como requisito e principal critério na determinação de tal compensação. No seu Considerando 35, pode ler-se:

(35) Em certos casos de excepção ou limitação, os titulares dos direitos devem receber uma compensação equitativa que os compense de modo adequado da utilização feita das suas obras ou outra matéria protegida. Na determinação da forma, das modalidades e do possível nível dessa compensação equitativa, devem ser tidas em conta as circunstâncias específicas a cada caso. Aquando da avaliação dessas circunstâncias, o principal critério será o possível prejuízo resultante do acto em questão para os titulares de direitos. Nos casos em que os titulares dos direitos já tenham recebido pagamento sob qualquer outra forma, por exemplo como parte de uma taxa de licença, não dará necessariamente lugar a qualquer pagamento específico ou separado. O nível da compensação equitativa deverá ter devidamente em conta o grau de utilização das medidas de carácter tecnológico destinadas à protecção referidas na presente directiva. Em certas situações em que o prejuízo para o titular do direito seja mínimo, não há lugar a obrigação de pagamento.

Histórico

A atualização da Lei da Cópia Privada em 2015, depois de uma discussão pública polémica de vários anos, determinava que caso a AGECOP recolhesse mais de 15 milhões de euros por ano, deveria o excedente ser transferido para o Fundo de Fomento Cultural. Tal parecia indicar que o legislador considerava que o tal “possível prejuízo”, pela realização de cópias privadas, não ultrapassaria os 15 milhões de euros. Mas a verdade é que nunca se percebeu de onde surgiu este valor.

Apesar de desde 2018 a AGECOP ter recolhido por ano mais do que aquele valor em taxa de cópia privada, parece nunca ter sido transferido qualquer remanescente para o Fundo de Fomento Cultural. Nesse ano, a AGECOP debitou 15.993.145,46 €, recebendo 15.960.974,17 €, mas decidiu realizar uma “reserva ad hoc” [sic] no valor de 1.450.000,00 €, considerando assim que o montante cobrado efetivamente disponível era de 14.510.974,17 €, e, portanto, inferior à fasquia dos 15 milhões de euros.

No ano seguinte, em 2019, aquela entidade voltou a cobrar um montante acima dos 15 milhões de euros: debitou 23.234.060,00 € e recebeu 23.242.229,80 €. Novamente, a AGECOP voltou a realizar uma “reserva ad hoc” [sic], desta feita no valor bem mais substancial de 8.267.000,00 €, voltando a considerar, assim, que o montante efetivamente disponível era apenas de 14.975.229,80 €, portanto mais uma vez inferior ao valor limite máximo com que poderia ficar.

Curiosamente, as reservas ad hoc [sic] foram sempre num valor que, deduzido do total, tornavam o valor disponível ligeiramente abaixo do limite máximo dos 15 milhões de euros.

Em 2020, como alertado pela D3, foi discretamente introduzido e aprovado no Orçamento do Estado um artigo que removia o limite de 15 milhões de euros, passando a AGECOP a ficar com a totalidade da taxa que recolhesse. O que vem provar que o legislador nunca calculou o “possível prejuízo” para determinar o montante da taxa da cópia privada, como exigido pela diretiva InfoSoc. Este parece ser um valor arbitrário, que resulta e é constantamente aumentado devido ao extenso lobby político feito pelo setor que dele beneficia.
Nesse ano, já livre do limite legal dos 15 milhões de euros, a AGECOP recebeu 25.520.652,39€ de taxa de cópia privada. Nos dois últimos anos, chegámos a valores acima dos 30 milhões de euros: mais do dobro dos 15 milhões iniciais.

Note-se que 2020 e 2021 foram dois anos de pandemia. Em abril de 2020, o Jornal de Notícias dava conta de uma subida nas vendas de tecnologia (equipamentos sujeitos à taxa da cópia privada) de quase 50% por causa do teletrabalho e do ensino à distância. Em quantos destes equipamentos comprados para serem principalmente usados no trabalho e ensino foi cobrada taxa da cópia privada?

Em 2022, e à semelhança dos anos anteriores, a taxa recolhida pela cópia sonora e audiovisual foi distribuída pela SPA (representante dos autores); pela GDA (representantes dos artistas, intérpretes e executantes); pela GEDIPE (representantes dos produtores audiovisuais); e AUDIOGEST (representantes dos produtores musicais). Já a taxa recolhida pela cópia gráfica e reprográfica foi distribuída pela APEL (representantes das editoras) e VISAPRESS (representantes das editoras de publicações periódicas - jornais e revistas).

A lei determina que a entidade gestora (AGECOP) regule os critérios de distribuição “entre os membros dos associados” (SPA, GDA, etc.), mas não parece haver informação sobre essa repartição. Também parece não haver informação sobre a distribuição da taxa da cópia privada aos autores e artistas que não estão, nem querem estar, registados em entidades de gestão coletiva.

O que é uma cópia privada?

É no artigo 75º e seguintes do Código de Direito de Autor e Direitos Conexos que encontramos as excepções ao direito de autor, ou seja, é neste artigo da lei que sabemos o que podemos fazer com as obras e em que condições, sem ter a necessidade de pedir autorização a todos os titulares dos direitos das obras. As excepções, ou utilizações livres como são designadas na nossa lei, foram criadas para garantir algum equilíbrio entre o direito de autor e os direitos fundamentais dos cidadãos, assim como para permitir alguma inovação. Há excepções para o ensino e investigação científica, para crítica, para instituições de património cultural, entre outras.

A excepção da cópia privada encontra-se no n.º 2, alínea a) do artigo 75º (sendo ainda relevantes os ns.º 4 e 5 do mesmo artigo e os artigos 76º, 81º e 82º), que estabelece o seguinte:

2 - São lícitas, sem o consentimento do autor, as seguintes utilizações da obra:
a) A reprodução de obra, para fins exclusivamente privados, em papel ou suporte similar, realizada através de qualquer tipo de técnica fotográfica ou processo com resultados semelhantes, com excepção das partituras, bem como a reprodução em qualquer meio realizada por pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais directos ou indirectos;

Daqui infere-se que podemos fazer uma cópia integral da obra em suporte de papel ou similar, podendo utilizar lojas de fotocópias, por exemplo. Se quisermos fazer a cópia noutro meio, esta tem de ser realizada por pessoa singular, isto é, pessoas colectivas como empresas, lojas, instituições, e outras, não podem fazer cópias privadas. Estas cópias só podem ser realizadas nas condições:

  • ser para uso privado (não podemos dar, emprestar, ou vender a cópia a outra pessoa);
  • a cópia não deve “atingir a exploração normal da obra, nem causar prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor” - ponto 4 do artigo 75º;
  • são nulas cláusulas contratuais que visem eliminar ou impedir as excepções - ponto 5 do artigo 75º;
  • todos os usos das excepções “devem ser acompanhadas da indicação, sempre que possível, do nome do autor e do editor, do título da obra e demais circunstâncias que os identifiquem” - ponto 1 alínea a) do artigo 76º;
  • no caso da exceção da cópia privada, o uso deve ser acompanhado “de uma remuneração equitativa a atribuir ao autor e, no âmbito analógico, ao editor pela entidade que tiver procedido à reprodução” - ponto 1 alínea b) do artigo 76º;
  • no artigo 81º - “Outras Reproduções” - volta a repetir-se: “b) Para uso exclusivamente privado, desde que não atinja a exploração normal da obra e não cause prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor, não podendo ser utilizada para quaisquer fins de comunicação pública ou comercialização.”;
  • o artigo 82º estabelece o modo de pagamento da taxa.

A realização de cópias privadas está assim sujeita a um conjunto de condições: para uso exclusivamente privado, não podendo causar prejuízo nem à exploração económica da obra, nem aos interesses do autor. Ora, tais condições na lei, tão restritas, reforçam o argumento de que, a existir, o prejuízo possível decorrente da cópia privada só poderá ser mínimo, e portanto, de acordo com lei europeia, não há obrigação de pagamento de uma taxa.

Estudos sobre os hábitos de gravação de media

A AGECOP tem feito alguns “estudos” sobre a realização de cópias privadas em Portugal, tendo apresentado um aquando da discussão pública da proposta de lei, tendo realizado outro em 2016, e mais recentemente outro, em 2021. Estes estudos são uma obrigação que decorre da lei, com o objetivo de aferir como é que os hábitos de cópia da população portuguesa evoluem.

Todos os “estudos” realizados até 2017 são irrelevantes, não têm qualquer validade ou interesse para a questão da cópia privada, uma vez que até essa altura não era possível realizar cópias privadas da vasta maioria das obras: até essa altura, a solução na lei Portuguesa para garantir que os cidadãos pudessem realizar as exceções ao direito de autor (incluindo a cópia privada) em obras com DRM, como requerido pela Diretiva de 2001, não funcionava, e portanto cópias de obras com DRM seriam sempre ilegais, logo nunca poderiam ser cópias privadas. Em 2017, a lei portuguesa foi corrigida para que os cidadãos pudessem finalmente e legalmente exercer as exceções ao direito de autor, mesmo que a obra tenha DRM.

Infelizmente, o “estudo” de 2021, “Hábitos de realização de Gravações de Media” [sic], que se encontra no site da AGECOP, contém várias falhas:

  • O primeiro problema aparece logo na amostra: só foram seleccionadas pessoas que já têm o hábito de fazer gravações de media. Ou seja, este “estudo” não diz se há mais ou menos pessoas a fazer cópias privadas do que em anos anteriores. Como o principal critério para a existência ou valor da taxa é o possível prejuízo resultante do acto da cópia privada era importante perceber se há mais ou menos pessoas a realizar esse acto. Recorde-se que o principal argumento das entidades que compõem a AGECOP, e que lutaram por esta lei, era que as pessoas já não faziam cópias em cassetes (as cassetes de áudio e vídeo também tinham taxa), e era preciso taxar os novos equipamentos onde as pessoas faziam agora cópias privadas, como discos externos, computadores, etc. Com o aparecimento e utilização cada vez maior do streaming, assim como a possibilidade das pessoas poderem ter a obra que adquiriram em vários dispositivos autorizados, é razoável concluir que a realização de cópias privadas seja cada vez menor. No entanto, este “estudo” nada nos diz sobre se há mais ou menos pessoas a fazerem cópias privadas.

  • Dentro do conjunto de pessoas que foram selecionadas, ou seja, que já têm o hábito de fazer gravações de media, há uma quebra nos hábitos de gravação em relação a 2016, principalmente na gravação de música, filmes/séries, e artigos de imprensa escrita, precisamente nos conteúdos a que respeita a cópia privada.

  • Independentemente do equipamento usado, as fotos pessoais são os principais conteúdos gravados pelos inquiridos. Sublinhe-se que as pessoas inquiridas têm o hábito de fazer gravações de media e mesmo neste conjunto o principal uso para gravações é a gravação de fotos pessoais. Isto é confirmado na análise dos equipamentos específicos (computador, memória USB, smartphone, cartões de memória, impressora, tablet, scanner).

  • Nas gravações do scanner, os segundos maiores conteúdos reproduzidos são “Artigos/ fotos/ imagens imprensa escrita na internet”, o que parece estranho: se os os conteúdos já estão na Internet, porquê ou como usar um scanner para os reproduzir?

  • Relativamente ao tipo de ficheiros guardados, a vasta maioria dos inquiridos gravam “ficheiros produzidos pelo próprio/amigos”, com percentagens à volta dos 90%, sendo que os “Ficheiros produzidos por terceiros que podem estar protegidos por direitos de autor” são gravados por 50%/60% dos inquiridos.

  • Dentro dos “Ficheiros produzidos por terceiros que podem estar protegidos por direitos de autor” não há distinção entre o que são realmente cópias privadas, as que são cópias previamente autorizadas pelos titulares dos direitos, por exemplo obras com licenças livres, ou as que são ilegais. Sublinhe-se que muitas lojas e plataformas de venda de música, filmes, livros, jornais, etc. permitem um número limitado de cópias em diferentes dispositivos em simultâneo. Tais cópias não são consideradas cópias privadas, segundo a definição da lei, e a própria directiva sublinha que as cópias previamente autorizadas pelos titulares dos direitos não estão sujeitas a esta taxa, uma vez que o licenciamento que permitiu a sua distribuição já inclui o pagamento dessas cópias. As recomendações sobre as taxas da cópia privada, apresentadas por António Vitorino à Comissão Europeia, em 2013, diziam o mesmo.

  • Por fim, não há indicação das perguntas realizadas, pelo que não sabemos como os respondentes interpretaram as questões. O “estudo” refere “gravações” e “reproduções”, mas quem responde pode considerar que está a gravar quando instala no disco rígido um jogo que comprou e, no entanto, não é esse o objectivo da pergunta porque não se está a fazer uma cópia privada. Da mesma forma, a palavra reprodução tanto significa fazer uma cópia como ouvir ou ver uma obra.

Aquilo que a AGECOP apelida de “estudo” são na verdade apenas slides, com pouco texto, em que muitos dos dados não estão devidamente explicados. Ainda assim, fizémos uma tabela com os dados mais importantes que pudessem responder aos objetivos que a lei tinha, ao exigir este tipo de estudos. A última coluna da tabela é a que corresponde à cópia privada.

Percentagem de inquiridos que gravam no equipamentoEquipamento usadoPrincipal conteúdo gravadoPercentagem de inquiridos que reproduzem ficheiros produzidos pelo próprio/amigosPercentagem de inquiridos que reproduzem ficheiros produzidos por terceiros que podem estar protegidos por direitos de autor
92,4% Gravações Computador Fotos pessoais 89,7% 53,7
80,9% Gravações Memória USB (PEN) Fotos pessoais 90,4% 54,8%
65,6% Gravações Disco Rígido Externo Não indica 91,0% 55,9%
85,4% Gravações Smartphone Fotos pessoais 89,7% 54,7%
66,1% Gravações Cartões de Memória Fotos pessoais 90,8% 56,7%
36,4% Gravações Leitor MP3/MP4 Música 89,9% 59,1%
55% Utilização da Impressora Fotos pessoais 90,2% 55,7%
51,6% Gravações BOX TV paga filmes/séries 90,8% 57,4%
47,4% Gravações tablet Fotos pessoais 92,2% 54%
18,7% Gravações DVD Filmes/Séries 90,9% 57,2%
10,1% Gravações scanner Fotos pessoais 88,4% 59,8%
3,2% Gravações Blu-Ray Filmes/Séries 86,1% 55,6%
10,8% Gravações Disco Multimédia Não indica 85% 68,3%
5,4% Gravações no ereader Livros/excertos/páginas de livros/fotos/imagens publicadas em livros 90,2% 63,9%

 

Conclusões

Com a entrada em vigor da nova Lei da Cópia Privada, a taxa teve um aumento colossal: de 2014 a 2022, o aumento da taxa foi de 5851%. E o legislador continua sem demonstrar o “possível prejuízo” decorrente do acto da cópia privada, algo a que a directiva europeia obriga.

O “estudo” apresentado pela AGECOP não indica se há mais ou menos pessoas a realizarem cópias, mas dentro do conjunto dos cidadãos que têm o hábito de fazer gravações de media, há uma quebra desse hábito, a maioria dos equipamentos são usados principalmente para guardar e gravar fotos pessoais (não sujeitas a taxa da cópia privada), e a vasta maioria das pessoas inquiridas gravam ficheiros criados pelo próprio/amigos (não sujeitos a taxa da cópia privada).

Apesar destes dados, e do facto de hoje em dia, devido à mudança da distribuição analógica para a digital, já quase ninguém fazer cópias privadas de produtos de entretenimento (como copiar de um CD para o MP3 ou para o computador), a taxa continua a aumentar sem qualquer controlo. A lei de 2015 determinava que a tabela das taxas dos equipamentos fosse revista a cada dois anos, uma vez que de dois em dois anos os equipamentos têm a tendência a duplicar de espaço e diminuir de preço, mas não há notícia dos valores terem sido alguma vez revistos nestes últimos sete anos.

O ano passado os portugueses pagaram 35 milhões de euros para guardarem fotos pessoais e ficheiros produzidos por eles próprios. A taxa da cópia privada (que segundo o Tribunal Constitucional nem sequer é uma taxa mas sim algo mais próximo a um imposto), tornou-se uma autêntica renda cobrada a todos para benefício de alguns lobbies, sem qualquer justificação. A lei da taxa da cópia privada precisa de ser revista urgentemente.