Pela defesa dos direitos digitais em Portugal




Em Abril de 2022, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) pronunciou-se sobre o famoso artigo 17 da Directiva (UE) 2019/790 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Abril de 2019, relativa aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único digital - Processo C-401/19 – Polónia v Parlamento e Conselho.

Nesta decisão, o TJUE afirmou que o art. 17 implica de facto uma limitação da liberdade de expressão e de informação, mas considerou tal limitação justificada de acordo com os critérios de proporcionalidade do art. 52 n.º1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Carta), desde que estejam verificados determinados requisitos.

O Tribunal ainda declarou que cabe ao Estados, no processo de transposição, garantir que esta é realizada de acordo com um equilíbrio entre os direitos fundamentais protegidos pela Carta tal como interpretados pelo TJUE, cujas decisões são, aliás, vinculativas.
Nas palavras do TJUE:

Incumbe aos Estados‑Membros, na transposição do artigo 17.º da Diretiva 2019/790 para o seu direito interno, basear‑se numa interpretação desta disposição que permita assegurar o justo equilíbrio entre os direitos fundamentais protegidos pela Carta. Seguidamente, na implementação das medidas de transposição da referida disposição, incumbe às autoridades e aos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros não apenas interpretar o seu direito nacional em conformidade com esta mesma disposição mas também não se basear numa interpretação desta que entre em conflito com os referidos direitos fundamentais ou com os outros princípios gerais do direito da União, como o princípio da proporcionalidade.
(parágrafo 99)

Assim, a transposição, que Portugal não realizou em devido tempo, terá agora de ter também em consideração, para além do texto da directiva, a jurisprudência do TJUE, respeitando plenamente a interpretação que Tribunal apresenta no recente acórdão do TJUE.

Vejamos então quais são os requisitos que o TJUE impõe:

– Não podem ser usados filtros que bloqueiam conteúdos lícitos

O TJUE considerou que não podem ser usados filtros que bloqueiam conteúdos lícitos aquando do carregamento.
Nas palavras do TJUE:

(…) o legislador da União, a fim de prevenir o risco que a utilização de ferramentas de reconhecimento e de filtragem automáticos comporta para o direito à liberdade de expressão e de informação dos utilizadores de serviços de partilha de conteúdos em linha, estabeleceu um limite claro e preciso, na aceção da jurisprudência recordada no n.º 67 do presente acórdão, às medidas que podem ser tomadas ou exigidas na aplicação das obrigações previstas no artigo 17.º, n.º 4, alínea b), e alínea c), in fine, da Diretiva 2019/790, excluindo, designadamente, as medidas que filtram e bloqueiam conteúdos lícitos aquando do carregamento.
(parágrafo 85)

– Não podem ser usados filtros incapazes de distinguir entre utilizações lícitas e utilizações ilícitas

O TJUE explicitou que não podem ser usados filtros que não consigam distinguir suficientemente de utilizações lícitas de utilizações ilícitas.

Nas palavras do TJUE:

Neste contexto, importa recordar que o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de declarar que um sistema de filtragem que poderia não distinguir suficientemente entre um conteúdo ilícito e um conteúdo lícito, de modo que a sua implementação poderia ter por efeito provocar o bloqueio de comunicações de conteúdo lícito, seria incompatível com o direito à liberdade de expressão e de informação, garantido pelo artigo 11.º da Carta, e não respeitaria o justo equilíbrio entre este e o direito de propriedade intelectual. A este respeito, o Tribunal de Justiça salientou que a resposta à questão da licitude de uma transmissão depende também da aplicação de exceções legais aos direitos de autor que variam de um Estado‑Membro para outro. Além disso, nalguns Estados‑Membros determinadas obras podem pertencer ao domínio público, ou os autores em causa podem disponibilizá‑las gratuitamente em linha (v., neste sentido, Acórdão de 16 de fevereiro de 2012, SABAM, C‑360/10, EU:C:2012:85, n.os 50, 51 e jurisprudência referida).
(parágrafo 86)

– A obrigação de remoção só existe em casos de manifesta ilicitude

Considerou o Tribunal que as plataformas não devem ser obrigadas a prevenir o carregamento de conteúdos cuja análise da licitude requeira uma análise autónoma do conteúdo e de eventuais excepções aplicáveis.

Nas palavras do TJUE:

(…) o artigo 17.º, n.º 8 (…) impõe uma garantia adicional para o respeito do direito à liberdade de expressão e de informação dos utilizadores de serviços de partilha de conteúdos em linha. Com efeito, esta precisão implica que os prestadores desses serviços não podem ser obrigados a prevenir o carregamento e a disponibilização ao público de conteúdos cuja constatação do caráter ilícito necessitaria, por seu lado, de uma apreciação autónoma do conteúdo à luz das informações fornecidas pelos titulares de direitos, bem como de eventuais exceções e limitações aos direitos de autor (v., por analogia, Acórdão de 3 de outubro de 2019, Glawischnig‑Piesczek, C‑18/18, EU:C:2019:821, n.os 41 a 46).
(parágrafo 90)

Continua o TJUE, dizendo que a remoção só é possível quando:

o prestador de serviços de partilha de conteúdos em linha se certifique, sem exame jurídico aprofundado, do caráter ilícito da comunicação e da compatibilidade de uma eventual remoção desse conteúdo com a liberdade de expressão e de informação (Acórdão de 22 de junho de 2021, YouTube e Cyando, C‑682/18 e C‑683/18, EU:C:2021:503, n.o 116).
(parágrafo 91)

O Advogado-Geral, nas suas Conclusões (par. 198-201), interpreta a norma no sentido de que as plataformas apenas podem ser obrigadas a filtrar conteúdos em casos de utilizações “manifestamente ilícitas”.

– Filtros não podem impedir direitos dos utilizadores

O TJUE afirmou claramente que as excepções e limitações aos direitos de autor, neste caso, correspondem a direitos dos utilizadores. Nesse sentido, sobrepõem-se às obrigações de filtragem, e cabe aos Estados-Membros assegurar esses direitos:

Nas palavras do TJUE:

(…) no que respeita às exceções e limitações aos direitos de autor, que preveem direitos em benefício dos utilizadores de obras(…) o artigo 17.º, n.o 7, segundo parágrafo, da Diretiva 2019/790 impõe aos Estados‑Membros que assegurem que os utilizadores em cada Estado‑Membro sejam autorizados a carregar e a disponibilizar os conteúdos por eles gerados para fins específicos de citação, crítica, análise, caricatura, paródia ou pastiche.
(parágrafo 87)

Dúvidas restassem sobre o entendimento do TJUE, relativamente à ponderação dos interesses em jogo, o Tribunal chega mesmo a afirmar que a protecção do direito de propriedade intelectual não é absoluta, nem deve ser assegurada a qualquer custo:

(…)embora a proteção do direito de propriedade intelectual esteja efetivamente consagrada no artigo 17.º, n.º 2, da Carta, não resulta de forma alguma desta disposição nem da jurisprudência do Tribunal de Justiça que esse direito seja intangível e que a sua proteção deva, pois, ser assegurada de maneira absoluta (Acórdão de 29 de julho de 2019, Funke Medien NRW, C‑469/17, EU:C:2019:623, n.o 72 e jurisprudência referida).
(parágrafo 92)

Conclusão

A proposta de transposição apresentada pelo Governo não reflecte a jurisprudência do TJUE, nomeadamente no que respeita às garantias e salvaguardas aos utilizadores das plataformas e aos forte limites impostos à utilização de filtros de conteúdos. Uma eventual transposição nestes termos colocará Portugal em incumprimento do Direito da União Europeia. A acontecer, a D3 apresentará de imediato uma queixa à Comissão Europeia por infracção do Direito da União Europeia, por parte do Estado Português.