Pela defesa dos direitos digitais em Portugal




Fomos ontem surpreendidos com as declarações no Parlamento do Prof. Jorge Buescu, reconhecido investigador, em que veicula um ponto de vista inédito e inusitado: a app foi vítima de uma “condenação pública”, um erro que neste momento nos está a “custar caro”. Esta mensagem espalhou-se rapidamente pelos principais meios de comunicação social, via Lusa.

Sabemos todos, incluindo o Prof., que a app implodiu por mérito próprio, e não por uma abstracta condenação da opinião pública. Preocupa-nos profundamente que, face a uma quarta vaga a instalar-se, encontremos reputadas personalidades da ciência a fabricar narrativas postiças para tentar reescrever a trágica história da Stayaway e, assim, pôr em causa a compreensão do problema e possíveis soluções.

Tendo a D3 acompanhado este assunto desde o primeiro dia, podemos enunciar quatro factores que consideramos decisivos para o previsível fracasso da app:

  1. A app, tecnicamente, não funciona. O Bluetooth está longe de ter a fiabilidade necessária para poder constituir um meio de medir distâncias de forma fidedigna: atravessa paredes e barreiras e sofre facilmente interferências (resultando em falsos positivos e negativos); não funciona em transportes públicos, e mesmo em condições ideais a sua taxa de deteção é demasiado baixa para poder ser um mecanismo fiável de saúde pública.
  2. As pessoas rapidamente descobriram que a app não funciona. Abundaram relatos de pessoas cuja app se manteve “verde” quando elas sabiam ter estado em contacto prolongado com alguém que depois revelou estar infetado. Entretanto, a campanha mediática da app nunca preparou as pessoas para eventuais falhas, apresentando a app com um optimismo projetado, como se apresentar a app como eficaz seria o suficiente para ela o ser. Como consequência, as pessoas rapidamente perderam confiança na app, e nesse cenário mesmo uma app funcional fracassaria.
  3. A falhada medida do Governo de tornar a app obrigatória politizou-a irremediavelmente. A tentativa bizarra de tornar a app obrigatória em outubro de 2020, de que o próprio Inesctec se demarcou, teve o efeito imediato de associar a app às direções políticas do governo, que imediatamente se tornou o alvo de críticas de todos os quadrantes políticos devido a uma medida claramente autoritária. A confiança na Stayaway foi totalmente posta em causa: uma das promessas iniciais da app havia sido o seu carácter voluntário, pelo que se tornou bem mais difícil confiar nas outras promessas de privacidade e de que a app apenas seria usada para um propósito limitado.
  4. As culpas foram sempre atiradas para terceiros, e sempre a falhar o alvo. Não esqueçamos também a dura campanha contra os médicos, acusando-os de ser os responsáveis da ineficácia da app. Noutros momentos os ataques foram dirigidos à CNPD, porque estaria a bloquear mecanismos que tornariam a emissão de códigos mais célere. Esta análise falha quando reparamos que face aos códigos emitidos, a adesão das pessoas foi sempre baixa: começou por ser 40% (4 em 10 pessoas introduziam o código dado pelo médico), para descer abaixo dos 20% nos estertores finais do projeto, com milhares de códigos já emitidos.

O investigador defende também que as apps são utilizadas noutros países europeus “sem problemas nenhuns de privacidade”. Sobre a questão da privacidade, ter-lhe-à escapado por exemplo a notícia da falha de segurança do Google que pôs em causa a integridade dos dados privados das pessoas, afetando também a Stayaway. Mas mesmo deixando passar, falar de “problemas nenhuns” lá fora é de quem não está a prestar grande atenção ao assunto. Compreendemos que nos dias que correm é difícil seguir tudo, mas nesse caso não é responsável ir para o Parlamento mandar bocas para o ar. Especialmente quando se trata de pessoas da ciência.

Com a app, as coisas “talvez pudessem ser um pouco diferentes”, sendo que “seguramente” faria a diferença nos eventos de supertransmissão. Aqui torna-se evidente que o Prof. se baseia numa visão de fé cega na eficácia da Stayaway, porque estudos recentes demonstram que estas apps têm uma eficácia de menos de 25% em contexto de multidões, falhando a deteção de 3 em cada 4 contactos na melhor das hipóteses; face a exposições mais prolongadas, desce para abaixo dos 10%. Para lidar com os eventos de supertransmissão, não há app que possa dispensar a evidência que estes simplesmente não podem ter lugar durante uma pandemia global.

Custa-nos ter de chamar os bois pelos nomes quando vemos uma personalidade da ciência a ignorar as mais básicas premissas do método científico, pelo que exortamos o Prof. a revelar em que documentação, estudos ou relatos se baseia para as suas abstractas acusações feitas nas mais altas instâncias da gestão da pandemia. Esperamos que tenha sido um lapso provocado pela fadiga pandémica, e não mais uma tentativa de ressuscitar esta telenovela zombie como forma de desviar a atenção pública da iminente quarta vaga que estamos prestes a enfrentar.

Finalmente, recordamos também que embora o Grupo Parlamentar do PS tenha inicialmente anunciado audiências com a sociedade civil, incluindo a D3, podemos avançar que nunca recebemos qualquer convite para tal, nem tivemos nota que tais audiências tenham tido lugar. Já sentimos ser grave não existir qualquer relatório público sobre a experiência Stayaway, mas entramos no domínio do irresponsável quando se vêem conselheiros de prestígio a contribuir para a confusão sobre o que realmente se passou.

A D3 admite a sua profunda exasperação com a incapacidade e falta de vontade política e científica em debater as conclusões à volta da app. Como ninguém o fez ainda, e como já circulam novamente tentativas de deflectir responsabilidades pelo fracasso do projeto, a D3 irá tornar público nos próximos dias o Relatório Público Stayaway, um documento que estamos a preparar há várias semanas em que reunimos os vários episódios que marcaram esta experiência, e as conclusões que se podem tirar para se formularem melhores políticas de saúde pública sem tecno-deslumbramentos.