Pela defesa dos direitos digitais em Portugal




A comemoração do 10º aniversário da COMMUNIA é a oportunidade ideal para apresentarmos algo que já há muito tardava: a tradução portuguesa do Manifesto do Domínio Público.

A D3 assinou o Manifesto, e convida todos a assinarem também.


 Manifesto do Domínio Público

“O livro, enquanto livro, pertence ao autor, mas enquanto pensamento pertence - a palavra não é demasiado ampla - à humanidade. Todas as inteligências têm direito a ele. Se um dos dois direitos, o direito do escritor e o direito do espírito humano, tivesse de ser sacrificado, certamente seria o direito do escritor, pois o interesse público é nossa única preocupação, e todos, digo-o eu, devem vir antes de nós.”
Victor Hugo, Discurso de abertura do Congresso Literário Internacional de 1878, 1878.

O Domínio Público, tal como o entendemos, é o património de informação que está livre de barreiras ao acesso ou reutilização normalmente associadas à protecção dos direitos de autor, seja porque está livre de qualquer protecção de direitos de autor ou porque os detentores dos direitos decidiram remover essas barreiras. É a base da nossa auto-compreensão, tal como expressa pelo nosso conhecimento e cultura comuns. É a matéria-prima a partir da qual derivam novos conhecimentos e são criadas novas obras culturais. O Domínio Público funciona como um mecanismo de protecção que assegura que esta matéria-prima está disponível ao seu custo de reprodução - próximo de zero - e que todos os membros da sociedade podem sobre ela construir. Ter um Domínio Público saudável e próspero é essencial para o bem-estar social e económico das nossas sociedades. O Domínio Público desempenha um papel capital nos domínios da educação, ciência, património cultural e informação do sector público. Um Domínio Público saudável e próspero é um dos pré-requisitos para assegurar que os princípios do Artigo 27 (1) da Declaração Universal dos Direitos Humanos (“Todas as pessoas têm o direito de participar livremente na vida cultural da comunidade, a desfrutar das artes e a partilhar o progresso científico e os seus benefícios”) possam ser usufruídos por todas as pessoas em todo o mundo.

“Os nossos mercados, a nossa democracia, a nossa ciência, as nossas tradições de liberdade de expressão e a nossa arte dependem mais fortemente de material disponível livremente em Domínio Público do que dependem de material informativo coberto por direitos de propriedade. O Domínio Público não é um resíduo pegajoso deixado para trás quando todas as coisas boas foram cobertas pela lei de propriedade. O Domínio Público é o lugar de onde extraímos os blocos de construção da nossa cultura. É, de facto, a maior parte da nossa cultura.”
James Boyle, The Public Domain, p.40f, 2008

A sociedade da informação digital em rede trouxe a questão do Domínio Público para primeiro plano das discussões sobre os direitos de autor. A fim de preservar e fortalecer o Domínio Público, precisamos de uma compreensão sólida e actualizada da natureza e do papel deste recurso essencial. Este Manifesto do Domínio Público define o Domínio Público e esboça os princípios e orientações necessárias para um Domínio Público saudável no início do século XXI. O Domínio Público é aqui considerado na sua relação com o direito de autor, com exclusão de outros direitos de propriedade intelectual (como patentes e marcas registadas), e onde o direito de autor deve ser entendido no seu sentido mais lato para incluir direitos patrimoniais e morais ao abrigo dos direitos de autor e direitos conexos (incluindo direitos vizinhos e direitos de bases de dados). No resto do presente documento, os direitos de autor são, por conseguinte, utilizados como um termo geral para estes direitos. Além disso, o termo “obras” inclui todos os conteúdos sujeitos a direitos de autor, incluindo, portanto, bases de dados, execuções e gravações. Do mesmo modo, o termo “autores” inclui fotógrafos, produtores, difusores, pintores, artistas, intérpretes ou executantes.

O Domínio Público no Século XXI

O Domínio Público a que se aspira no presente Manifesto é definido como material cultural que pode ser utilizado sem restrições, isento de direitos de autor. Para além das obras que são formalmente do domínio público, existem também muitas obras valiosas que pessoas partilharam voluntariamente em termos generosos, criando um espaço comum privado que funciona de muitas maneiras como o domínio público. Além disso, as pessoas podem também fazer uso de muitas obras protegidas através de excepções e limitações aos direitos de autor, utilização justa e “fair dealing”. Todas estas fontes que permitem um maior acesso à nossa cultura e património são importantes e todas precisam de ser activamente mantidas para que a sociedade possa colher todos os benefícios do nosso conhecimento e cultura partilhados.

O Domínio Público

O Domínio Público estrutural está no cerne da noção de Domínio Público e é composto pelo nosso conhecimento, cultura e recursos partilhados que podem ser utilizados sem restrições de direitos de autor de acordo com a lei actual. Especificamente, o Domínio Público estrutural é constituído por duas classes diferentes de material:

  1. Obras de autoria em que a protecção dos direitos de autor tenha expirado. O direito de autor é um direito temporário concedido aos autores. Assim que esta proteção temporária chega ao fim, todas as restrições legais deixam de existir, sendo em alguns países sujeitas aos direitos morais perpétuos do autor.
  2. Os bens comuns de informação essenciais que não estão cobertos por direitos de autor. Obras que não são protegidas por direitos de autor porque falham o teste de originalidade, ou são excluídas da protecção (tais como dados, factos, ideias, procedimentos, processos, sistemas, métodos de funcionamento, conceitos, princípios ou descobertas, independentemente da forma sob a qual são descritas, explicadas, ilustradas ou incorporadas numa obra, bem como leis e decisões judiciais e administrativas). Este bem comum essencial é demasiado importante ao funcionamento das nossas sociedades para ser sobrecarregado com restrições legais de qualquer natureza, mesmo que durante um período limitado.

O Domínio Público estrutural é um equilíbrio historicamente conseguido aos direitos dos autores protegidos por lei e é essencial à memória cultural e à base de conhecimento das nossas sociedades. Na segunda metade do século XX, os dois elementos ora identificados foram pressionados pela extensão do prazo de protecção dos direitos de autor e pela introdução de mais regimes de protecção jurídica semelhantes aos dos direitos de autor.

Bens comuns voluntários e prerrogativas de utilizador

Para além deste núcleo estrutural do Domínio Público, existem outras fontes essenciais que permitem a indivíduos interagir livremente com obras protegidas por direitos de autor. Estas representam o “espaço de manobra” da nossa cultura e conhecimento actuais, assegurando que a protecção dos direitos de autor não interfere com os requisitos específicos da sociedade e com as escolhas voluntárias dos autores. Embora estas fontes aumentem o acesso a obras protegidas, algumas delas condicionam este acesso a certas formas de utilização ou restringem o acesso a certas classes de utilizadores:

  1. Obras que são voluntariamente partilhadas pelos seus titulares de direitos. Os criadores podem remover restrições de utilização das suas obras, quer licenciando-as livremente, quer utilizando outros instrumentos legais para permitir que outros utilizem as suas obras sem restrições, quer dedicando-as ao Domínio Público. Para definições de licenciamento gratuito ver a definição de software livre (http://www.gnu.org/philosophy/free-sw.html), a definição de obras culturais livres (http://freedomdefined.org/Definition) e a definição de conhecimento aberto (http://opendefinition.org/1.0/) para referência.
  2. As prerrogativas de utilizador criadas por excepções e limitações aos direitos de autor, utilização justa e “fair dealing”. Estas prerrogativas são uma parte integrante do Domínio Público. Asseguram o acesso suficiente à nossa cultura e conhecimento partilhados, permitindo o funcionamento de instituições sociais essenciais e permitindo a participação social de indivíduos com necessidades especiais.

No seu conjunto, o domínio público, a partilha voluntária de obras e as excepções e limitações aos direitos de autor, a utilização justa e o “fair dealing” vão muito longe para assegurar que todos têm acesso à nossa cultura e conhecimentos partilhados, a fim de facilitar a inovação e a participação cultural em benefício de toda a sociedade. Por conseguinte, é importante que o Domínio Público em ambas as suas encarnações seja activamente mantido para que possa continuar a cumprir este papel fundamental neste período de rápidas mudanças tecnológicas e sociais.

Princípios Gerais

Num período de rápidas mudanças tecnológicas e sociais, o Domínio Público cumpre um papel essencial na participação cultural e na inovação digital, e por isso precisa de ser activamente mantido. A manutenção activa do Domínio Público precisa de ter em conta uma série de princípios gerais. Os princípios seguintes são essenciais para preservar uma compreensão significativa do Domínio Público e para assegurar que o Domínio Público continua a funcionar no ambiente tecnológico da sociedade da informação em rede. No que respeita ao Domínio Público estrutural, estes são os seguintes:

  1. O Domínio Público é a regra, a protecção dos direitos de autor é a excepção. Uma vez que a protecção dos direitos de autor é concedida apenas em relação às formas originais de expressão, a grande maioria dos dados, informações e ideias produzidos a nível mundial em qualquer altura pertence ao Domínio Público. Para além da informação que não é elegível para protecção, o Domínio Público é alargado todos os anos por obras cujo prazo de protecção expira. A aplicação combinada dos requisitos de protecção e da duração limitada da protecção dos direitos de autor contribuem para o património do Domínio Público, de modo a assegurar o acesso à nossa cultura e conhecimento partilhados.
  2. A protecção dos direitos de autor deve durar apenas o tempo necessário para alcançar um compromisso razoável entre proteger e recompensar o autor pelo seu trabalho intelectual e salvaguardar o interesse público na divulgação da cultura e do conhecimento. Nem da perspectiva do autor nem da do público em geral existem quaisquer argumentos válidos (sejam históricos, económicos, sociais ou outros) que apoiem um prazo excessivamente longo de protecção dos direitos de autor. Embora o autor deva poder colher os frutos do seu trabalho intelectual, o público em geral não deve ser privado durante um período de tempo demasiado longo dos benefícios da livre utilização dessas obras.
  3. O que está no Domínio Público deve permanecer no Domínio Público. O controlo exclusivo sobre as obras do Domínio Público não deve ser restabelecido através da reivindicação de direitos exclusivos sobre reproduções técnicas das obras ou sobre a utilização de medidas de protecção técnicas, para limitar o acesso a reproduções técnicas de tais obras.
  4. O utilizador legítimo de uma cópia digital de uma obra do domínio público deve ser livre de (re)utilizar, copiar e modificar tal obra. O estatuto de Domínio Público de uma obra não significa necessariamente que esta deve ser tornada acessível ao público. Os proprietários de obras físicas que se encontram no Domínio Público são livres de restringir o acesso a tais obras. Contudo, uma vez concedido o acesso a uma obra, não deve haver restrições legais sobre a reutilização, modificação ou reprodução dessas obras.
  5. Os contratos ou as medidas de protecção técnicas que restringem o acesso e a reutilização de obras do domínio público não devem ser aplicados. O estatuto de Domínio Público de uma obra garante o direito de reutilização, modificação e reprodução. Isto inclui também prerrogativas de utilizador decorrentes de excepções e limitações, utilização justa e “fair dealing”, assegurando que estas não possam ser limitadas por meios contratuais ou tecnológicos.

 Além disso, os seguintes princípios estão no cerne dos bens comuns voluntários e das prerrogativas de utilizador descritas acima:

1. A renúncia voluntária aos direitos de autor e a partilha de obras protegidas são exercícios legítimos de exclusividade dos direitos de autor. Muitos autores com direito à protecção dos direitos de autor das suas obras não desejam exercer estes direitos em toda a sua extensão ou desejam renunciar totalmente a estes direitos. Tais acções, desde que voluntárias, são um exercício legítimo da exclusividade dos direitos de autor e não devem ser impedidas por lei, por estatuto ou por outros mecanismos, incluindo os direitos morais.
2. As excepções e limitações aos direitos de autor, utilização justa e “fair dealing” devem ser activamente mantidas para assegurar a eficácia do equilíbrio fundamental dos direitos de autor e do interesse público. Estes mecanismos criam prerrogativas de utilizador que constituem o espaço de manobra dentro do actual sistema de direitos de autor. Dado o rápido ritmo de mudança tanto na tecnologia como na sociedade, é importante que estes mecanismos continuem a ser capazes de assegurar o funcionamento de instituições sociais essenciais e a participação social de indivíduos com necessidades especiais. Por conseguinte, as excepções e limitações aos direitos de autor, utilização justa e “fair dealing” devem ser interpretadas como sendo de natureza evolutiva e constantemente adaptadas para ter em conta o interesse público.

Para além destes princípios gerais, há uma série de questões relevantes para o Domínio Público que devem ser abordadas de imediato. As seguintes recomendações visam proteger o Domínio Público e assegurar que este possa continuar a funcionar de uma forma significativa. Embora estas recomendações sejam aplicáveis em todo o espectro dos direitos de autor, são de particular relevância para a educação, o património cultural e a investigação científica.

 Recomendações gerais

  1. O prazo de protecção dos direitos de autor deve ser reduzido. A duração excessiva da protecção dos direitos de autor combinada com a ausência de formalidades é altamente prejudicial para a acessibilidade do nosso conhecimento e cultura comuns. Além disso, aumenta a ocorrência de obras órfãs, obras que não estão sob o controlo dos seus autores nem fazem parte do Domínio Público, e em qualquer dos casos não podem ser utilizadas. Assim, para novas obras, a duração da protecção dos direitos de autor deve ser reduzida a um prazo mais razoável.
  2. Qualquer alteração ao âmbito da protecção dos direitos de autor (incluindo qualquer nova definição de matéria susceptível de protecção ou expansão de direitos exclusivos) deve ter em conta os efeitos sobre o Domínio Público. Qualquer alteração do âmbito da protecção dos direitos de autor não deve ser aplicada retroactivamente a obras já sujeitas a protecção. Os direitos de autor são uma excepção limitada no tempo ao estatuto de Domínio Público da nossa cultura e conhecimento partilhados. No século XX, o seu âmbito foi significativamente alargado, para acomodar os interesses de uma pequena classe de titulares de direitos em detrimento do público em geral. Como resultado, a maior parte da nossa cultura e conhecimento partilhados estão presos por detrás de direitos de autor e restrições técnicas. Temos de assegurar, no mínimo, que esta situação não se agravará e que será afirmativamente melhorada no futuro.
  3. Quando o material é considerado como pertencendo ao Domínio Público estrutural no seu país de origem, o material deve ser reconhecido como parte do Domínio Público estrutural em todos os outros países do mundo. Quando o material num país não é elegível para protecção de direitos de autor porque está abrangido por uma exclusão específica de direitos de autor, ou porque não cumpre o critério de originalidade ou porque a duração da sua protecção caducou, não deve ser possível a ninguém (incluindo ao autor) invocar a protecção de direitos de autor sobre o mesmo material noutro país para retirar esse material do Domínio Público estrutural.
  4. Qualquer tentativa falsa ou enganosa de apropriação indevida de material do domínio público deve ser punida legalmente. A fim de preservar a integridade do Domínio Público e proteger os utilizadores de material do Domínio Público de representações inexactas e enganosas, qualquer tentativa falsa ou enganosa de reivindicar exclusividade sobre material do Domínio Público deve ser declarada ilegal.
  5. Nenhum outro direito de propriedade intelectual deve ser utilizado para reconstituir a exclusividade sobre material do domínio público. O Domínio Público é parte integrante do equilíbrio interno do sistema de direitos de autor. Este equilíbrio interno não deve ser manipulado por tentativas de reconstituição ou de obtenção de controlo exclusivo através de regulamentações externas aos direitos de autor.
  6. Deve haver um caminho prático e eficaz para disponibilizar “obras órfãs” e obras publicadas que já não estejam comercialmente disponíveis (tais como obras esgotadas) para reutilização pela sociedade. A extensão do âmbito e duração dos direitos de autor e a proibição de formalidades para obras estrangeiras criaram um enorme corpo de obras órfãs que não estão sob o controlo dos seus autores nem fazem parte do Domínio Público. Dado que tais obras ao abrigo da lei actual não beneficiam os seus autores ou a sociedade, estas obras precisam de ser disponibilizadas para reutilização produtiva pela sociedade como um todo.
  7. As instituições do património cultural devem assumir um papel especial na rotulagem e preservação eficaz das obras do Domínio Público. Às organizações sem fins lucrativos do património cultural tem sido confiada, há séculos, a preservação do nosso conhecimento e cultura comuns. Como parte desse papel, estas devem assegurar que as obras do Domínio Público estão disponíveis a toda a sociedade, rotulando-as, preservando-as e tornando-as livremente disponíveis.
  8. Não devem existir obstáculos legais que impeçam a partilha voluntária de obras ou a dedicação de obras ao Domínio Público. Ambos são exercícios legítimos de direitos exclusivos concedidos pelos direitos de autor e ambos são fundamentais para garantir o acesso a bens culturais e conhecimento essenciais e para respeitar a vontade dos autores.
  9. As utilizações pessoais não comerciais de obras protegidas devem, em geral, ser tornadas possíveis, devendo ser exploradas formas alternativas de remuneração do autor. Embora seja essencial para o auto-desenvolvimento de cada indivíduo que ele ou ela possa fazer uso pessoal não comercial das obras, é igualmente essencial que a posição do autor seja tomada em consideração ao estabelecer novas limitações e excepções aos direitos de autor ou ao rever as antigas.

Redigido por COMMUNIA em 25/01/2010.
Traduzido e revisto por Paula Simões, Ana I. Azevedo e Eduardo Santos, publicado em 15/06/2021.
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