O Governo realizou recentemente uma consulta pública sobre o Plano de Recuperação e Resiliência. O plano apresentado divide-se em três dimensões: Dimensão Resiliência, Dimensão Transição Climática e Dimensão Transição Digital. A D3 participou nesta consulta, tendo enviado comentários relativos à Transição Digital.
Reproduz-se abaixo o texto submetido à consulta pública.
O presente comentário da Associação D3 - Defesa dos Direitos Digitais cinge-se ao plano para a Transição Digital.
Escola Digital
Computadores distribuídos aos alunos:
O modelo escolhido para a distribuição de computadores a alunos e professores não cumpre as condições mínimas de igualdade de oportunidades, falhando no seu objectivo de “democratização do acesso às tecnologias digitais”. Tal acontece porquanto, nos computadores distribuídos ao abrigo deste programa:
- É proibido instalar qualquer programa (ou hardware), salvo programas exclusivamente para fins do processo de ensino previamente fornecidos ou autorizados pelo Ministério ou Director.
- É proibido o computador sair de casa ou da escola, salvo para fins de aprendizagem ou quando autorizado pelo Ministério ou Director.
- O computador tem de ser devolvido no final do ciclo de estudos.
Estas condições são excessivamente restritivas, não permitindo uma verdadeira transição digital acessível a todos. Não se pode querer promover a capacitação digital dos alunos ao mesmo tempo que os proibimos de instalar software, limitando assim todo o potencial de exploração e de aprendizagem que um computador pode permitir. Não se pode querer promover a literacia digital e mediática, quando a ideia que transmitimos aos alunos é a de que se devem limitar a ser meros utilizadores do computador e do software que lhes é atribuído, sem qualquer tipo de autonomia e liberdade. Os computadores são ferramentas ao serviço das pessoas, e não o contrário. O meio digital pode ser uma forma de opressão e exploração, ou pode constituir uma forma única de expressão, experimentação e enriquecimento pessoal – tudo depende do poder que as pessoas têm (ou não) para usar livremente os seus computadores. Uma boa aprendizagem implica necessariamente essa liberdade de explorar e experimentar.
A liberdade de poder instalar o que bem se entender num computador e de explorar todas as possibilidades que os programas de computador oferecem é primordial e deve ser um aspecto prioritário na escolha de um computador para um aluno.
Outras medidas para a Escola Digital
- A digitalização das escolas requer infraestrutura tecnológica própria, bem como os meios humanos especializados capazes de manter e dar resposta às necessidades das escolas. Não é possível colmatar as necessidades estruturais das escolas recorrendo apenas a prestadores de serviços externos.
- A concepção e desenvolvimento de MOOCs (Massive Open Online Courses), prevista no programa relativo aos Açores, deve ser uma aposta nacional e não apenas regional.
- Os conteúdos educativos digitais produzidos ao abrigo deste programa devem ser disponibilizados de forma livre e aberta, ao dispor de qualquer pessoa, de qualquer país. Isto permitiria, por exemplo, incentivar a aprendizagem da Língua Portuguesa como segunda língua por parte de crianças e adultos, mesmo que não vivam em Portugal.
- Os programas devem prever explicitamente a educação para a participação activa em projectos de conhecimento livre, de acesso democrático, que admitem participações e contribuições de quaisquer pessoas (exemplo: Wikipédia).
- Os programas devem fomentar o espírito crítico dos alunos sobre a tecnologia que utilizam e o seu papel na sociedade, nomeadamente em relação aos pontos referidos infra.
Soberania Digital
Em nosso entender, o Plano é omisso num dos aspectos mais cruciais da actualidade tecnológica: a soberania digital.
Em 2017, o Público publicava os resultados de uma investigação “Investigate Europe”, na qual se chamava a atenção para a Europa se estar a tornar “a colónia digital dos EUA”.
A investigação revela que a Europa se encontra dependente de software dos EUA, que é “caro”, e “usado secretamente pelas agências de segurança de Washington para recolher informação sensível”; acrescenta ainda que a própria Comissão Europeia admite existirem “serviços públicos capturados pela Microsoft”. Tendo em conta este cenário, é especialmente preocupante que um plano de Transição Digital apresentado pelo Estado não procure dar respostas a estes problemas.
A situação de soberania digital não é apenas uma questão da Administração Pública. Também as empresas devem assegurar a sua independência tecnológica, de forma a que nunca fiquem numa situação de “aprisionamento tecnológico”. Tal acontece quando uma entidade fica refém de um fornecedor de produtos ou serviços, não podendo procurar outro fornecedor, ou pelo menos não conseguir fazê-lo sem com isso incorrer em substanciais custos de mudança. Esta questão deve constar igualmente dos programas relativos à educação e cidadania digital, nas escolas.
Para evitar situações de aprisionamento tecnológico, Estado (incluindo escolas) e empresas devem fomentar o espírito crítico do software que utilizam. Na escolha do software, devem nomeadamente ser tidos em conta os seguintes factores:
-
Transparência e protecção de dados
Garantias dadas sobre o funcionamento do programa, como por exemplo o seu tratamento de dados, os níveis de acesso, a localização física do armazenamento, ou o código que executa. -
Personalização e aprendizagem
Possibilidade de adaptar o programa às reais necessidades de cada entidade;
fomento de uma cultura de partilha de soluções e aprendizagem. -
Independência
Possibilidade de mudar de fornecedor de software e ou fornecedor de apoio técnico; utilização e compatibilidade de formatos abertos que evitem a criação de uma cultura de dependência -
Longevidade e Estabilidade
Preferir software que assegure maior fiabilidade e estabilidade, a longevidade da sua manutenção, e ainda a longevidade da compatibilidade com hardware, permitindo assim optimizar o tempo de vida útil do hardware. -
Segurança
Funcionalidades de segurança e níveis comuns de ameaça, nomeadamente o risco de virus e malware em geral. -
Custos
Preferência por soluções optimizadas a níveis de custos, em especial custos de entrada, de manutenção e de escala.