Sumário
- Mais um ano em que apesar do valor recolhido se situar acima do limite máximo (15M€), a AGECOP constituiu “reservas ad hoc” que impediram transferências para o Fundo de Fomento Cultural (FFC).
- Com o sector da cultura a atravessar a maior crise de sempre, os mais de 8 milhões de euros que deveriam ir para o FFC poderiam ser uma preciosa ajuda.
- O FFC também não receberá qualquer valor, de futuro. Uma alteração legislativa aprovada pela Assembleia da República no Orçamento de Estado 2020, no início do ano, suprimiu o limite dos 15M.
- Apesar de hoje em dia já ser preciso explicar aos mais novos o que é um CD ou um leitor de MP3, a factura que pagamos por coisas como a possibilidade de passar o conteúdo do CD original para o leitor de MP3 continua com ritmos de crescimento alucinantes (45%).
- Editores continuam a receber parte da taxa da cópia privada, contra a Directiva Europeia.
A Associação para a Gestão da Cópia Privada (AGECOP), uma associação de entidades privadas, recolheu em 2019 cerca de 23 milhões de euros relativos à taxa da cópia privada. Esta taxa visa compensar o possível (e discutível) prejuízo que o autor sofre quando um cidadão faz uma “cópia privada”, ou seja uma cópia para uso exclusivamente privado, a partir de uma obra a que acedeu legalmente. Esta taxa é cobrada sempre que os portugueses compram equipamentos electrónicos como por exemplo computadores, telemóveis, tablets, discos externos, impressoras, etc…
Aquando da sua alteração em 2015, a Lei da Cópia Privada determinava que a AGECOP deveria recolher toda a taxa paga pelos cidadãos, mas só poderia ficar com um máximo de 15 milhões de euros, devendo transferir o resto para o Fundo de Fomento Cultural (FFC), um fundo autónomo administrado por entidades públicas com o objectivo de apoiar e promover diversas actividades dos vários ramos da cultura. O Fundo de Fomento Cultural permite chegar também a criadores que não estão, nem querem estar, registados em entidades de gestão colectiva, alargando o número de criadores que podem beneficiar daquele fundo, ao contrário do valor recolhido e distribuído pela AGECOP, que chega apenas aos membros das entidades associadas da AGECOP.
Contudo, até há pouco tempo, a AGECOP recolheu sempre menos de 15 milhões de euros, nunca tendo assim transferido qualquer dinheiro para o FFC.
Em 2018 até recolheu mais do que 15 milhões, mas a AGECOP decidiu então a constituir uma “reserva ad hoc” [sic] de um 1,45 milhões, e por isso considerou nada haver a transferir para o FFC.
Em 2019, a AGECOP recolheu mais de 23M€, uma subida de 45,62% em relação ao valor alcançado no ano anterior. Infelizmente, a AGECOP voltou a fazer uma “reserva ad hoc” [sic], esta no valor 8,267 milhões de euros. Feitas as contas, o valor contabilizado pela AGECOP foi de 14,975 milhões de euros (ligeiramente abaixo do limite dos 15M euros), pelo que o Fundo de Fomento Cultural irá então receber o mesmo de sempre: zero.
Em 2020, a questão já não se colocará, uma vez que no início do ano foi discretamente colocado no Orçamento de Estado de 2020 um artigo que suprimiu por completo o limite de 15M€, pelo que a AGECOP poderá agora ficar com todo o dinheiro para si.
Milhões que fariam falta a um sector em profunda crise
Com o sector da cultura a atravessar muito provavelmente a maior crise da sua história, os mais de 8 milhões de euros que deveriam ter sido este ano transferidos para o Fundo de Fomento Cultural poderiam ser uma preciosa ajuda. Uma das atribuições do FFC é precisamente ajudar “individualidades que se distinguiram pelo contributo relevante no exercício da sua atividade profissional de artista, intérprete ou autor e que se encontram em situação de extrema carência económica, por falta de meios de subsistência”, através da atribuição de subsídio de mérito. Segundo o relatório de contas 2018, o último disponível no site, em 2018 foram gastos 666 mil euros nestes apoios. Estes 8 milhões de euros poderiam ser redireccionados para este subsídio atribuído pelo FFC, ou para um outro similar, a criar.
Para se ter um termo de comparação: todo o Programa de Apoio a Projectos nas áreas de Criação e Edição, da Direcção-Geral das Artes (DGARTES) - que integra o FFC - e vai apoiar apenas 110 das 388 candidaturas consideradas pelo juri como elegíveis, entre as 506 apresentadas, tem um valor total de cerca de 2,4 milhões de euros.
O possível prejuízo resultante do acto da cópia privada
A Directiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2001 permite, mas não obriga, à existência da taxa da cópia privada. Segundo o Considerando 35 da directiva:
- a compensação equitativa deve ter em conta as circunstâncias específicas de cada caso;
- na avaliação dessas circunstâncias, o principal critério será o possível prejuízo resultante do acto em questão para os titulares de direitos;
- no caso de obras compradas através de licenças, não haverá obrigação a qualquer pagamento específico ou separado;
- a compensação deverá ter devidamente em conta o grau de utilização das medidas de carácter tecnológico.
A directiva determina ainda que “em certas situações em que o prejuízo para o titular do direito seja mínimo, não há lugar a obrigação de pagamento.”
Em Portugal, o legislador nunca demonstrou o processo que o levou a chegar ao valor da taxa:
- nunca foi demonstrado o prejuízo resultante da realização de cópias privadas (cópias para uso exclusivamente privado que o cidadão faz a partir de uma obra a que acedeu legalmente);
- até 2017, a lei do DRM não permitia a realização de cópias privadas de quase nada;
- grande parte das obras são compradas através de licenças, que já incluem no preço as cópias que o cidadão pode fazer (compra de música, ebooks, filmes através de lojas como iTunes, Google, Amazon ou compra de streaming em lojas como Spotify, HBO, ou Netflix, entre outras);
- o Código de Direito de Autor e Direitos Conexos Português apenas permite a realização de cópias privadas, se não atingirem a exploração normal da obra (exploração económica, venda da obra), nem causarem prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor.
Perante isto, seria de esperar que, em Portugal, o possível prejuízo resultante do acto da cópia privada fosse mínimo, e, portanto, não houvesse lugar a taxa.
Seria também expectável que, nos países que optam por cobrar a taxa, o valor cobrado viesse progressivamente a diminuir ao longo dos anos, em virtude de mudanças tecnológicas. A cópia privada visa alegadamente compensar um alegado prejuízo na realização de cópias feitas exclusivamente para fins privados, como por exemplo passar músicas do CD para o MP3. Ora, já ninguém faz isso. Hoje em dia já é preciso explicar aos mais novos o que é um CD ou um leitor de MP3. Mais, hoje em dia a grande forma de consumo é o streaming, que não permite cópias privadas (utiliza DRM que o comum utilizador não consegue quebrar), pelo que existem muito menos cópias privadas a ser realizadas.
Infelizmente a taxa está longe de desaparecer ou até de diminuir, bem pelo contrário. A possibilidade cada vez menos utilizada de efectuar uma cópia privada tem apresentado uma factura cada vez mais pesada, e com ritmos de crescimento alucinantes (45% no ano último ano).
Em Portugal o valor da taxa tem razões que a própria razão - e a lei - desconhece.
Peguemos no exemplo de um disco rígido externo com capacidade de 2TB, que nas lojas portuguesas da especialidade custa cerca de 70,00€. Nos termos da lei da cópia privada, este aparelho pagará uma taxa de 7,50€. Assim, este produto apresenta uma taxa da cópia privada na sua aquisição que representa mais de 10% do seu valor!
Editores continuam a receber parte da taxa, contra a Directiva Europeia
Um outro ponto em que a Lei da Cópia Privada não cumpre a Directiva Europeia diz respeito à distribuição da taxa da cópia privada. Diz a directiva que, se houver lugar a taxa, esta é definida como uma compensação equitativa aos titulares dos direitos pelo tal prejuízo possível decorrente da cópia privada. Ou seja:
- se o prejuízo que decorre de os cidadãos fazerem cópias privadas for suficientemente grande para ser pago, os cidadãos têm de pagar uma taxa;
- essa taxa tem de ser equitativa em relação ao prejuízo causado (daí que o legislador tenha de calcular o prejuízo para determinar o valor da taxa que os cidadãos pagam - o que não aconteceu em Portugal);
- sendo uma compensação, ela tem de ser distribuída pelos titulares dos direitos que sofreram o tal prejuízo.
Quem são estes titulares dos direitos?
Sendo a cópia privada uma excepção ao direito de exclusivo de reprodução da obra, se essa excepção causar um prejuízo, então a compensação por esse prejuízo só pode ser devida aos titulares a quem a lei atribui o direito de exclusivo de reprodução da obra.
Segundo a directiva, o direito de reprodução da obra foi dado a autores (onde se incluem jornalistas), artistas, produtores de áudio, produtores de vídeo, e organismos de rádio, como se pode verificar no:
Artigo 2º
Direito de reprodução
Os Estados-Membros devem prever que o direito exclusivo de autorização ou proibição de reproduções, directas ou indirectas, temporárias ou permanentes, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte, cabe:
a) Aos autores, para as suas obras;
b) Aos artistas intérpretes ou executantes, para as fixações das suas prestações;
c) Aos produtores de fonogramas, para os seus fonogramas;
d) Aos produtores de primeiras fixações de filmes, para o original e as cópias dos seus filmes;
e) Aos organismos de radiodifusão, para as fixações das suas radiodifusões, independentemente de estas serem transmitidas por fio ou sem fio, incluindo por cabo ou satélite.
Ou seja, o legislador não deu o direito de reprodução às editoras. E bem, uma vez que não ter o direito de reprodução obriga as editoras a negociarem e pagarem a autores e artistas, para poderem reproduzir a obra (publicar). Se a lei atribuísse às editoras o direito de reproduzir a obra, estas não teriam incentivo para pagar aos autores. Porque haveria uma editora de pedir autorização e pagar a um autor para reproduzir a obra, se a editora já tivesse esse direito?
Isto mesmo foi concluído pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, em Novembro de 2015, no caso que opôs a Hewlett‑Packard Belgium à Reprobel, uma entidade de gestão colectiva similar à AGECOP:
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O artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2001/29 e o artigo 5.°, n.° 2, alínea b), desta opõem‑se a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que autoriza o Estado‑Membro a atribuir uma parte da compensação equitativa devida aos titulares de direitos aos editores de obras criadas pelos autores, sem que esses editores tenham uma obrigação, ainda que indireta, de fazer com que esses autores beneficiem de uma parte da compensação de que são privados.
1 A nível técnico, a popularmente denominada “taxa” da cópia privada corresponde na verdade à figura jurídica de imposto.