O Parlamento está quase a ir de férias de Verão, mas não sem antes votar um diploma que terá consequências negativas para a regulação da Internet e seus utilizadores. Parece um autêntico cliché, para quem costuma acompanhar este tipo de assunto, pois reune características típicas deste tipo de casos. Trata-se de um projecto-lei que tem por objectivo o “reforço da proteção dos menores contra qualquer forma de exploração ou de abuso sexual”, mas que no meio contém outras normas que alteram aspectos-chave da regulação da Internet (Lei do Comércio Electrónico). O facto de ser um diploma que visa a protecção de crianças fez com que estes aspectos laterais tenham passado despercebido a deputados, partidos, imprensa e sociedade civil.
A votação final global em plenário terá lugar amanhã à tarde. A D3 pediu a todos os partidos que votassem pela rejeição deste diploma.
O Projecto de Lei n.º 187/XIV/1.ª foi alvo de melhorias em sede da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, mas ainda assim o seu texto final apresenta vários problemas, que devem ditar a sua rejeição, por ora, em votação final global em plenário. A nossa análise limita-se às normas do Projecto de Lei que se interconectam com a Lei do Comércio Electrónico (Decreto-Lei n.º 7/2004, de 7 de janeiro) e com a regulação de plataformas em geral.
Propõe-se a adição de dois artigos (negritos nossos)
Artigo 19.º-A
Deveres de informaçãoOs prestadores intermediários de serviços em rede, na aceção do presente decreto-lei, informam, de imediato a terem conhecimento, o Ministério Público da deteção de conteúdos disponibilizados por meio dos serviços que prestam sempre que a disponibilização desses conteúdos, ou o acesso aos mesmos, possa constituir crime, nomeadamente crime de pornografia de menores ou crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência.
Artigo 19.º-B
Deveres de bloqueio1 –Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, os prestadores intermediários de serviços em rede asseguram num prazo de 48 horas o bloqueio dos sítios identificados como contendo pornografia de menores ou material conexo, através de procedimento transparente e com garantias adequadas, nomeadamente para assegurar que a restrição se limite ao que é necessário e proporcionado, e que os utilizadores sejam informados do motivo das restrições.
2 –Para efeitos do disposto no número anterior, são considerados sítios identificados como contendo pornografia de menores ou material conexo todos os que integrem as listas elaboradas para esse efeito pelas entidades nacionais e internacionais competentes em matéria de prevenção e combate à criminalidade, as quais são comunicadas aos prestadores intermediários de serviço em rede,nos termos previstos no n.º 4.
3 –O bloqueio realizado ao abrigo do disposto no n.º 1 pode ser impugnado perante o juiz competente, nos termos gerais.
4 - As listas a que se refere o n.º 2 são comunicadas aos prestadores intermediários de serviços em rede e à Procuradoria-Geral da República pelas entidades que as elaboraram, com a colaboração das autoridades setoriais competentes, as quais, para o efeito, fornecem também à Procuradoria-Geral da República todos os elementos identificativos dos prestadores intermediários de serviço em rede e informam de quaisquer alterações que ocorram nessa matéria.»
1. Art. 19.º-A: Deveres de denúncia das plataformas relativamente a conteúdos que possam constituir crime
O presente diploma tem por objetivo o reforço da proteção dos menores contra qualquer forma de exploração ou de abuso sexual. Contudo, estranhamente, estipulam-se no artigo 19.º-A deveres de informação que englobam conteúdos que possam, em abstrato, constituir qualquer tipo de crime.
Se não vejamos:
«sempre que a disponibilização desses conteúdos, ou o acesso aos mesmos, possa constituir crime, nomeadamente (…)»:
A utilização do advérbio “nomeadamente” implica que os crimes enunciados são meramente exemplificativos. Logo, este dever abrange todo e qualquer tipo de crime. Este foi também o entendimento da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, nomeadamente do Sr. Deputado Pedro Delgado Alves (cfr. pg. 6 do documento / 7 do .pdf in fine do Texto final e relatório da discussão e votação na especialidade).
«possa constituir crime»:
De forma mais precisa: este dever abrange conteúdos que possam constituir crime, deixando aos intermediários prestadores de serviço a apreciação jurídica sobre que conteúdos podem ou não ser suscetíveis de constituir um crime.
Por um lado, alarga-se incompreensivelmente o âmbito do presente Projecto de Lei, e sob a capa da proteção de menores contra a exploração e abuso sexual, aprova-se um dever de denúncia que abarca na realidade todo e qualquer tipo de crime. Por outro lado, basta a mera possibilidade, em abstrato, de o conteúdo poder constituir crime, para gerar a obrigação de denúncia. Trata-se de uma má solução na medida em que tal avaliação jamais deverá caber a meros prestadores intermediários de serviços, principalmente se dessa avaliação podem resultar consequências legais para o intermediário.
Note-se que, em abstrato, existem demasiados conteúdos que podem vir a constituir crime. Qualquer conteúdo emitido de forma pública pode, eventualmente, vir a ser considerado: crime de difamação, crime de ameaça, crime de injúria, crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência, entre outros. A fronteira daquilo que pode ser dito graças à liberdade de expressão e daquilo que já extravasa essa liberdade é ténue, e é causa frequente de processos judiciais em que tanto declarante quanto visado acham que têm a lei do seu lado.
Pense-se no exemplo uma denúncia de assédio sexual realizada no âmbito do Movimento #MeToo. Em abstrato, tal denúncia pública pode constituir um crime de difamação do denunciado. Ora, como pode um mero intermediário/plataforma, que está obrigado à denúncia, fazer esta difícil análise? Deverá denunciar o denunciante ou o denunciado? Deverá, por via das dúvidas, denunciar toda e qualquer opinião? Ou toda e qualquer opinião que possa ser considerada polémica?
Mais do que isso, não se percebe qual seria a utilidade da obrigação de informação ao Ministério Público quando em causa estejam crimes particulares, em que o Ministério Público não tem sequer legitimidade para agir. Inexiste nesta norma qualquer noção de proporcionalidade.
(outros aspectos legais remetidos para nota de rodapé 1)
2. Art. 19.º-B: Deveres de bloqueio
Dada a natureza do bloqueio referido no Art. 19º-B, deveria ser de assumir que apenas são abrangidos por esta obrigação os prestadores de serviços de acesso à Internet (vulgo ISPs). Efetivamente, não parece que a obrigação de bloquear sítios de Internet possa ser cumprida, por exemplo, por um prestador de serviços de armazenamento.
Assim não se entendendo, até porque a letra da lei refere expressamente que o dever recai sobre todos “os prestadores intermediários de serviços em rede, na aceção do presente decreto-lei”), perguntamo-nos que tipo de bloqueio pode ser requerido a prestadores de serviços de armazenamento. Nesse sentido, há que ter em atenção que os prestadores intermediários de serviços abrangidos pelo DL n.º 7/2004 vão muito para além das grandes empresas tecnológicas sobejamente conhecidas. Ao contrário do que acontecia há mais de 20 anos (a Directiva do Comércio Electrónico, que deu origem a esta Lei, data do ano 2000), a atividade de armazenamento de conteúdos é hoje em dia algo de trivial na Internet. Sabendo-se que o tecido empresarial português é composto em 99,9% por PMEs (dados PORDATA), é bastante provável que a esmagadora maioria dos prestadores de intermediários de serviços abrangidos por esta norma sejam PMEs e startups. Pior: nada no DL n.º 7/2004 restringe a prestação destes serviços a pessoas coletivas, pelo que podem estar até em causa pessoas singulares. Assim, exige-se do legislador um especial cuidado ao definir obrigações que terão de ser também cumpridas por PMEs, startups, e pessoas singulares, não devendo legislar para todos como se o estivesse a fazer apenas para as grandes corporações da Internet.
Neste sentido, tanto o prazo de 48 horas para a remoção (no proposto nº.1 do Art. 19-B), como as contra-ordenações propostas no artigo 37º, carecem em absoluto de proporcionalidade. As contra-ordenações previstas não fazem qualquer mossa aos grandes players, mas podem arruinar PMEs nacionais e europeias.
3. Criminalização de meros intermediários prestadores de serviço?
No contexto das propostas de alteração analisadas supra, relativas à Lei do Comércio Electrónico, justificam-se genuínas dúvidas sobre a ratio de uma pequeníssima alteração ao n.1 a) do art. 176º do Código Penal. Onde a lei actual refere: “produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, a qualquer título ou por qualquer meio, os materiais previstos na alínea anterior”, acrescenta-se agora também a palavra “disponibilizar”. Ora, não se alcançando que tipo de atividade de disponibilização não esteja já abarcada na “distribuição” ou na “divulgação”, que constam já da lei, perguntamo-nos se esta alteração pretenderá criminalizar os meros intermediários prestadores de serviço. Talvez intermediários que falhem em bloquear algum conteúdo? Queremos acreditar que não será essa a intenção, principalmente quando vigora um princípio de ausência de dever geral de vigilância dos prestadores intermediários sobre os conteúdos dos seus utilizadores, mas de qualquer forma as alterações à lei penal não devem ser realizadas com tais níveis de incerteza jurídica.
4. Devem evitar-se alterações ad-hoc e pouco ponderadas ao regime e-Commerce, em pleno processo legislativo europeu sobre o mesmo assunto
O tema da responsabilidade e regulação das plataformas é uma discussão de elevada complexidade, que levanta bastantes problemas e desafios, que não são passíveis de ser devidamente resolvidos num ou dois artigos inseridos sem discussão numa legislação de âmbito tão específico como o presente Projecto de Lei. Nesse sentido, as alterações ora propostas podem levantar mais problemas do que as soluções que oferecem, nomeadamente no que respeite à sua correta compatibilização com o regime geral da lei do comércio electrónico.
A responsabilidade e regulação das plataformas está neste momento a ser discutida a nível Europeu. Desta discussão sairá uma proposta da Comissão Europeia, que atualizará a Directiva do Comércio Electrónico (Digital Services Act). Independentemente do formato da Proposta (Regulamento ou Directiva), o Digital Services Act terá efeito direto ou deverá ser transposto pelo Estado Português, o que poderia implicar derrogar algumas das normas propostas neste Projecto de Lei n.º 187/XIV/1.ª. Nesse sentido, entendemos que seria mais prudente para o legislador português aguardar pelas referidas discussões ao nível comunitário e pelo texto final do Digital Services Act para alterar as regras aplicáveis às obrigações e responsabilidades dos prestadores intermediários de serviços em rede atualmente decorrentes do Decreto-Lei n.º 7/2007, de 7 de janeiro.
Contributos da D3 na Assembleia da República
A D3 enviou um contributo de última hora à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, infelizmente já não a tempo de levar à apresentação de propostas de alteração. Posteriormente enviámos aos partidos uma exposição similar a esta, que esperamos que seja levada em conta. Foi também possível contactar com um dos deputados responsáveis por este diploma, trocar impressões e expôr as nossas reservas. No entanto, os problemas que aqui expomos são afastados com base numa interpretação completamente diferente da lei, que em nosso entender não tem um mínimo de correspondência com o que consta efectivamente da letra do Projecto de Lei.
Notas:
1. Melhor solução seria manter simplesmente o regime já existente no artigo 13º a) do DL n.º 7/2004:
“Cabe aos prestadores intermediários de serviços a obrigação para com as entidades competentes:
a) De informar de imediato quando tiverem conhecimento de atividades ilícitas que se desenvolvam por via dos serviços que prestam;”
Que, no que respeita aos prestadores intermediários do serviço de armazenagem em servidor, deve ser interpretado conjuntamente com o critério do artigo 16º, ou seja o critério da “ilicitude manifesta” do conteúdo.
A solução atual indicia claramente uma ratio do legislador anterior em não colocar o ónus de decisão dos casos dúbios num mero intermediário de serviço. Já a presente proposta é, por um lado, redundante nos objetivos que pretende alcançar, e por outro lado, traz incerteza jurídica quanto à interpretação e conciliação das normas ora referidas. De facto, o art. 13º parece já englobar o agora proposto no art. 19º-A do PL, suscitando-se portanto dúvidas interpretativas quanto à sobreposição destas normas. Certamente que o proposto no art. 19.º-A não poderá ser interpretado como um dever acrescido para os prestadores intermediários que vá no sentido de obrigar a que estes tenham algum tipo de dever de monitorizar os conteúdos, sob pena de violação do princípio da ausência de um dever geral de vigilância dos prestadores intermediários de serviços previsto no art. 12º do DL 7/2004, na Directiva do Comércio Electrónico, e amplamente confirmado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia.
Por fim, nada neste artigo restringe a obrigação de informação ao Ministério Público aos conteúdos que tenham efetiva ligação a Portugal. Principalmente no que respeita às grandes plataformas da Internet, não faz sentido abranger conteúdos que não possuam pelo menos um elemento relevante de ligação a Portugal. Estas plataformas têm uma dimensão colossal e uma escala mundial, em que estatisticamente apenas uma parte ínfima dos seus conteúdos poderão ser relevantes para a ordem jurídica portuguesa. Deveria o legislador nacional indicar os elementos de conexão de considera relevantes para a ordem jurídica portuguesa.