Pela defesa dos direitos digitais em Portugal




Comunicado de Imprensa

Associação D3 - Defesa dos Direitos Digitais
 
1 de Setembro de 2020

 A app Stayaway Covid, apresentada repetidamente como mais uma “arma” no combate à pandemia, foi finalmente lançada.

A Associação D3 - Defesa dos Direitos Digitais articulou anteriormente os potenciais problemas de uma solução tecnológica apressada, com possíveis efeitos negativos que obrigam a uma maior sensatez na altura de anunciar soluções definitivas. Ricardo Lafuente, vice-presidente da D3, resume: “Constatamos que o discurso à volta das ARCs se tornou bem menos eufórico ao longo dos múltiplos atrasos e adiamentos, e que os relatos vindos lá de fora não abonam em favor da eficácia deste tipo de aplicações. Ao mesmo tempo, permanecem lacunas e indefinições no que toca à forma como funciona e aos riscos que comporta. Finalmente, o apoio entusiasmado do Governo à Stayaway abre um grave precedente ao dar às grandes tecnológicas um papel central na definição dos protocolos de saúde pública”.

Enunciamos, agora, as questões mais salientes que envolvem a Stayaway, às quais faltam respostas satisfatórias.

 

Nenhum sinal positivo até agora

Já passou tempo suficiente para se poder olhar para os países que arrancaram com apps semelhantes, e só se pode concluir que está longe de haver qualquer semblante de sucesso. Podemos aliás constatá-lo no discurso dos próprios promotores da app, que moderaram a euforia inicial: o presidente do Inesc Tec admite que é cedo para se falar de eficácia, e ainda está para surgir nas notícias qualquer relato promissor que valide esta forma de combate à pandemia.

Bem pelo contrário, os sinais são reveladores de um potencial fracasso: em França, onde 2,3 milhões de pessoas instalaram a app, foram emitidas apenas 72 notificações de contacto. Mesmo na Alemanha, um dos países com maior adoção da aplicação, a adesão não chega aos 25% da população, bem longe dos números indicados anteriormente como mínimos para se poder falar em eficácia da app. A ausência de relatos de sucesso ou sequer eficácia vindos de fora deveria aconselhar maior ponderação na altura de repetir a experiência por cá.

É voluntário ou puxam-nos as orelhas se não instalarmos?

Ao contrário dos promotores da app, que se tornaram cuidadosos no que toca a falar de eficácia, o Ministério da Saúde entra no assunto sem qualquer contenção: segundo o presidente dos SPMS, é “fundamental que descarreguem a aplicação, que a mantenham ligada, que a usem no seu dia-a-dia”. Mas o mesmo responsável admite que a app será apenas uma “ajuda” à luta contra a pandemia, pelo que será preciso bem mais para justificar a sofreguidão com que se apresenta a Stayaway como algo “fundamental”. A D3 defende que, na ausência de provas de eficácia, é irresponsável descrever o uso da app como “fundamental”, especialmente quando a sua instalação deverá ser uma decisão voluntária e individual, idealmente ponderada com recurso a dados fidedignos, e não a apelos catastrofistas.

Ao mesmo tempo, surgem notícias preocupantes relativas às recomendações operacionais emitidas pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Num comunicado recente do gabinete do MCTES, recomenda-se às instituições académicas que “Divulguem e incentivem a utilização pela comunidade académica do sistema digital STAYAWAY COVID, atualmente já em testes e a disponibilizar em agosto, como uma ferramenta eficaz, voluntária, não discriminatória e totalmente descentralizada, orientada para evitar e monitorizar o potencial risco de contágio”. Aqui, o mesmo problema: é apresentado como uma “ferramenta eficaz” algo que, à data do comunicado, não estava sequer lançado. É preocupante observar um Ministério a emitir semelhantes afirmações, num momento em que é essencial assegurar a confiança da população nas autoridades, para que a luta contra a doença não seja ainda mais dificultada pela desinformação e pela desconfiança. Esperamos que as comunidades académicas sejam mais sóbrias face a esta directiva, particularmente tendo em conta as recentes reservas expressas pela comunidade científica quanto à eficácia destas apps.

Finalmente, observámos o Primeiro-Ministro a defender a instalação da app como “um dever cívico”. Aqui a mensagem fica profundamente confusa: o seu uso é voluntário ou é um dever cívico? E novamente, ela é fundamental ou não? E se não é, por que é um dever cívico usá-la? O “dever” não se coaduna com o “poder” que a adoção voluntária implica, e sentimos que o discurso do Primeiro-Ministro, até agora cauteloso, passa a deixar implícito que a app é necessária para o combate à pandemia, coisa que o presidente dos SPMS acima citado já deixou claro que não é o caso.

Promessa quebrada: partes essenciais do código fonte continuam por publicar

Desde o princípio que foi prometida a publicação do código fonte da Stayaway. Parte desse código foi efetivamente publicada, mas apenas a que diz respeito ao interface da aplicação; o código do servidor não está, estranhamente, devidamente publicado.

A única coisa que encontramos nos repositórios do Inesc Tec é uma cópia antiga do “template” providenciado pelo D3PT, o projeto europeu cujo código a Stayaway reutiliza. Não existe qualquer acrescento por parte do Inesc Tec ou outra entidade portuguesa. Daqui duas conclusões são possíveis: ou este repositório desatualizado corresponde ao código que está a ser usado (com meses de atraso e falhas de segurança que entretanto foram corrigidas na origem); ou então o verdadeiro código permanece oculto, pelo que o anúncio de que o código fonte da aplicação é público não corresponde à verdade. Acreditamos que a segunda opção é a mais provável, mas faltam esclarecimentos essenciais face às promessas feitas – especialmente se recordarmos que o seu desenvolvimento terá sido levado a cabo com financiamento público.

Outra parte do código que move a aplicação permanece oculta, nomeadamente a parte controlada pela Apple e Google.

Apple e Google, ou o ajoelhamento do Governo perante a Big Tech

A Stayaway funciona recorrendo a componentes dos sistemas operativos dos telemóveis (GAEN é a sigla que envolve esses componentes), desenvolvidos e controlados pela Apple e pela Google. O próprio presidente do Inesc Tec reconhece que esta dependência põe totalmente em causa a transparência e o controlo sobre a aplicação: “Ao estarmos a usar estas funcionalidades da Apple e da Google perdemos o controlo sobre elas, mais ainda, apesar da aplicação e todo o sistema ser código aberto, esta parte não é e, portanto, perdemos esse controlo”, disse, acrescentando que esta é “uma fragilidade que não vai ser ultrapassada”.

O responsável pela app vem assim dar razão à Comissão Nacional de Proteção de Dados, quando esta manifestou grande preocupação com o “recurso à interface da Google e da Apple”, que será um dos “aspetos mais críticos da aplicação, na medida em que há uma parte crucial da sua execução que não é controlada pelos autores da aplicação ou pelos responsáveis pelo tratamento”. E aponta corretamente os riscos de tal abordagem: “Esta situação é ainda mais problemática porque o GAEN declara que o seu sistema está sujeito a modificações e extensões, por decisão unilateral das empresas, sem que se possa antecipar os efeitos que tal pode ter nos direitos dos utilizadores”.

Lamentamos profundamente que essa preocupação tenha sido ignorada pelo Governo, abrindo o perigoso precedente de permitir que Google e Apple se tornem uma componente dos protocolos de saúde pública, sem qualquer transparência ou responsabilidade democrática.

Perguntas ainda sem resposta

Assim, às dúvidas que exprimimos anteriormente, juntamos outras perguntas a que é fundamental obter resposta:

  • Quanto custou o desenvolvimento da app? Há ou não financiamento público no seu desenvolvimento?
  • Onde está o código-fonte do servidor da Stayaway?
  • Porque não está disponível o código que mostra o que Apple e Google fazem com os dados? Quais têm sido os esforços do Governo para assegurar transparência total por parte destas entidades?
  • Em que se baseia o Governo para afirmar que a Stayaway é uma “ferramenta eficaz”, quando não há dados concretos que demonstrem a eficácia destas apps?
  • Se uma pessoa for notificada, com a app a recomendar o seu isolamento, existe justificação de falta ao trabalho, a um exame, a aulas, a reuniões?
  • O que acontece se se concluir que a app não serviu para nada, como as experiências lá fora estão a evidenciar?

Ricardo Lafuente conclui: “A gravidade da pandemia impõe que não andemos a brincar às apps. Os recursos existentes devem ser colocados à disposição dos métodos que sabemos funcionar, e não para financiar aventuras tecno-fantasiosas de uma app que virá salvar a situação. Em alturas como esta, temos de aceitar que não virão soluções milagrosas providenciadas pela tecnologia, e devemos antes confiar na eficácia comprovada das medidas já levadas a cabo pela DGS. Podemos e devemos todos fazer a nossa parte, mas não é preciso instalar uma app para isso, apenas seguir as orientações dos organismos de saúde pública”.